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Uma mulher em defesa das mulheres

Quem pensa que uma delegada da Mulher está mais voltada à defesa criminal e policial das mulheres vítimas de violência, engana-se. Ana Maria Sola, titular da Delegacia da Mulher de Salto e de Itu, afirma que o seu trabalho de defesa é mais na área social.

Em entrevista ao jornal PRIMEIRAFEIRA por ocasião da passagem do Dia Internacional da Mulher, no último dia 8, a delegada disse que muitas mulheres chegam fragilizadas e com medo à delegacia e não têm perspectivas de sequência de vida depois da agressão.

Mas ela reforça que essas mulheres e seus filhos sempre encontram apoio e respaldo na Delegacia da Mulher, que vive ainda uma deficiência grave de estrutura, mas que luta com o que tem para vencer as dificuldades no dia a dia e manter a ajuda.

A delegada afirma que as mulheres precisam ser ouvidas e assistidas. Por isso, defende que a Delegacia da Mulher seja independente. Ela fez essa alteração quando chegou à cidade, pois na época a unidade funcionava nos fundos, sem separação.

Veja abaixo como a delegada vê a profissão, as dificuldades do cargo e como procura se destacar entre as mulheres por ouvir, entender e ajudar as vítimas de violência, cujo número tem aumentado com velocidade e intensidade desde a pandemia.

 

Qual a importância em ter o cargo de delegada e qual representatividade leva para outras mulheres?

Delegada Ana Maria Sola: A importância é mostrar para as mulheres que elas podem e têm que batalhar. Como dizem, é preciso ir atrás do seu sonho e, se você não tem um, criá-lo. A mulher precisa acreditar em si, saber que ela é um ser humano, que tem valor e nada nem ninguém tem direito de tirar isso dela. Lembro de uma vez, logo quando vim para Itu, que fui dar uma palestra em um projeto para crianças carentes. Era um projeto em que a criança saia da escola e ia para esse local e realizava alguns trabalhos. Até ganhava um dinheiro para levar para casa. Nessa palestra fui conversar com as crianças e lembro que uma criança me disse que para mim era mais fácil, pois a minha família tinha dinheiro e eu expliquei que não. Meu pai era tecelão, acordava às 3h da manhã e começava a trabalhar as 4h. Eu acreditei que iria conseguir. Estudei em escola pública a vida toda. Fiz faculdade com bolsa de estudo e eu consegui. Fiz questão de mostrar isso para eles. Eles ficaram todos animados. É importante você mostrar isso para a criança. Eu consegui batalhando. Quando passei na primeira fase do concurso, eu fiquei o Natal e o Ano Novo estudando para a segunda fase. Acho que temos que ter um objetivo na vida e focar naquilo que queremos. Depois é caminhar para frente e esquecer o resto.

 

Qual a diferença que as mulheres sentem em serem atendidas por outra mulher?

Delegada Ana Maria Sola: É diferente, pois as mulheres chegam envergonhadas e se sentem mais tranquilas quando são atendidas por outra mulher. Em Itu, por exemplo, temos dois funcionários homens e eles são muito bons. Escutam as mulheres e elas se sentem confortáveis com eles. Eu sempre converso com um novo funcionário e explico isso, temos que ouvir o que as mulheres têm a dizer, não dar opinião e julgar. Ao contrário, temos de ouvi-la e de orientá-la para devolver a sua dignidade.

 

Por que faltam profissionais mulheres nessa área?

Delegada Ana Maria Sola: Acho que na realidade faltam muitos profissionais de um modo geral, há muita defasagem. Por exemplo, aqui em Salto eu tenho somente dois escrivães e os demais funcionários são da Prefeitura. Se a Prefeitura não nos ajudasse, não teríamos condições de trabalhar.

 

Como foi o início do trabalho na Delegacia de Salto?

Delegada Ana Maria Sola: Antes de eu vir para cá, não havia Delegacia da Mulher. O delegado acumulava os dois trabalhos. Então o Conselho Seccional me chamou para assumir a cidade, pois aqui estava sem Delegada da Mulher desde 2015. A partir da minha chegada e de lá para cá me divido entre o trabalho aqui em Salto e em Itu. Como em Itu tem mais ocorrências, fico lá presencialmente três dias na semana e aqui eu fico dois. Mas estou o tempo todo com o celular, atendendo pedidos e dando orientações. Quando fazemos o que gostamos não sentimos muito as dificuldades. Lembro-me de que na época em que assumi, não existia nem um prédio para abrigar a Delegacia da Mulher. Atendíamos em três salas nos fundos. Não achei certo. Então resolvemos separar uma parte da delegacia para fazer essa divisão. A Delegacia de Mulher precisa ser separada das demais. É inadmissível você atender uma mulher vítima de violência, que já está fragilizada, em um local que ela pode ver um homem entrando algemado ou até mesmo uma criança ver essa cena. É totalmente incompatível.

 

Muitas mulheres vêm até a Delegacia da Mulher com crianças?

Delegada Ana Maria Sola: Sim, inclusive, através da ideia de uma funcionária nossa, montamos uma brinquedoteca aqui. Enquanto os pais estão registrando um boletim de ocorrência, a criança fica brincando. Também conseguimos montar uma cozinha, pois, às vezes, têm pessoas que vêm de longe. Assim, conseguimos servir um lanche para elas e amenizar a situação.

 

A cidade possui muitos casos de violência contra a mulher? Os números vêm aumentando em todo o país, não é?

Delegada Ana Maria Sola: Pós-pandemia o número de casos aumentou bastante. As pessoas estão acostumadas a viver e não a conviver. Da mesma forma que houve muitas separações na época da pandemia, aumentaram também as brigas e agressões. É o que eu sempre falo. Se a pessoa não tiver essa índole, pode vir qualquer pandemia que isso não vai acontecer. Acho que a pandemia liberou o que tem de melhor e de pior nas pessoas. Vemos muitas pessoas solidárias, que estão sempre ajudando as outras. Afinal, existem pessoas que têm essa necessidade de ajudar. Mas tem pessoas que não têm isso dentro delas e a pandemia aflorou o que a pessoa tem dentro dela, seja algo bom ou ruim. O que me chamou muito a atenção foi o aumento de casos de violência sexual contra criança nesse cenário pós-pandemia e não é somente aqui. Tenho conversado com colegas de outras Delegacias da Mulher e também notaram esse aumento. Eu sempre falo, é melhor a separação do que a agressão. A criança vai crescer naquele ambiente, vendo essas agressões e ela acha que é o correto, pois são seus pais, são os exemplos para ela. O resultado disso é que vai reproduzir.

 

Qual é a opinião da senhora sobre a legislação? Atualmente, ela atua mais a favor da mulher?

Delegada Ana Maria Sola: Sim, como, por exemplo, a Lei Maria da Penha. Mas ainda passamos por um grande problema, muitas mulheres ainda não acreditam que possam ser independentes.

 

Como resolver esse problema?

Delegada Ana Maria Sola: Muitas mulheres têm uma dependência emocional e financeira do marido. Elas casaram com o “príncipe encantado” e não perceberam que ele virou um “sapo”, ou que nunca foi um “príncipe” e ela não enxergava aquilo. Por isso acho importante termos um profissional da área de psicologia ou assistente social para mostrar para essa mulher que ela é capaz de seguir em frente mesmo sem o “príncipe” dela. Mostrar que ela pode arrumar um trabalho e ter sua independência financeira. Fazê-las entender que não precisam se sujeitar mais àquela situação. Tem mulher que acha que violência é só agressão, mas não é. Existe a violência física, psicológica, financeira, sexual. Acho a violência psicológica muito pior, pois ela vai minando a pessoa e chega uma hora que a pessoa acha que não é nada. Muitas mulheres vêm aqui e a primeira coisa que temos que fazer é devolver a dignidade para ela, para que ela passe a se enxergar. Nosso trabalho é muito social. Nós vamos punir o agressor, mas também vamos fazer a mulher enxergar a situação. Muitas mulheres pedem uma medida protetiva e logo você a vê com o agressor de novo, pois ela acredita que ele vai mudar. Muitas vezes o investigador vai até a casa da mulher, ela diz que o agressor sumiu, mas ele está lá dentro da casa. Muitas acreditam que não conseguem viver sem ele.

 

Mesmo hoje em que as mulheres conquistam cada vez mais a sua independência, tem mulheres que não se veem sem seus companheiros, mesmo sofrendo agressões?

Delegada Ana Maria Sola: Sim. Às vezes, é a violência psicológica. O homem age na mulher de tal maneira, que ela se acha um nada. Tem casos de mulheres que têm uma profissão, têm um trabalho e ainda assim ela vai sendo depreciada e humilhada diariamente e isso atinge muito a mulher. Para mim, a violência psicológica é ainda pior que a violência física.

 

Então a Delegacia da Mulher tem de ter um trabalho social?

Delegada Ana Maria Sola: Sim. Nós temos uma psicóloga, que é cedida pela prefeitura. Ela vem toda terça-feira no período da tarde. Estou “brigando” no bom sentido para conseguir uma assistente social para ficar aqui todos os dias também. Tem muitas mulheres que vêm aqui e elas só querem um ouvido. Elas só querem desabafar. A Delegacia da Mulher tem a parte policial e criminal, mas temos muito ainda da parte social.

 

Muitas mulheres procuram atendimento com a psicóloga?

Delegada Ana Maria Sola: Atualmente estamos conseguindo realizar esses atendimentos somente com crianças, porque o tempo da psicóloga aqui é curto. Só marcamos atendimento para crianças e a maioria delas é vítima de violência sexual. Com o psicólogo, as crianças conseguem desabafar e contar tudo.

 

Qual seria a estrutura ideal para a delegacia?

Delegada Ana Maria Sola: O ideal seria como prevê a Lei Maria da Penha: ter um espaço e nele a criança já seria atendida pelo psicólogo e, se necessário, já faria o boletim de ocorrência e passaria em um posto de saúde. Por exemplo, não temos um Instituto Médico Legal aqui. A criança precisa ser deslocada até Sorocaba. O ideal seria termos um espaço com tudo isso. A pessoa já passaria pelo Conselho da Mulher, Cras, Creas. Então falta estrutura sim, mas não é somente aqui. É muito raro o lugar que tenha essa estrutura toda. Temos contato direto com essas instituições, como o Cras e o Creas. Seria um sonho termos tudo isso em um espaço só. A pessoa já sairia atendida de forma completa.

 

Muitas mulheres têm medo de registrar a ocorrência?

Delegada Ana Maria Sola: Sim, muitas têm medo. Mas, quando é uma violência física, isso independe da mulher. Por exemplo, se você vê sua vizinha sendo agredida, você tem o dever de denunciar. Nem que seja uma denúncia anônima. Agora casos como injúria, calúnia e difamação, por exemplo, dependem da mulher. Temos casos em que vem familiares ou vizinhos realizar a denúncia, mas, às vezes, quando chamamos a mulher, ela nega as agressões. Ainda assim, quando é caso de violência física ou sexual, damos continuidade. Entretanto, fica mais difícil de provar quando a mulher nega. Sabemos que muitas fazem isso por medo. Muitas têm medo por não saber como será sua vida sem ele. Ficam pensando onde irão morar, o que vão comer, pensam nos filhos e tem esse medo.

 

Qual o conselho para as mulheres vítimas de agressão?

Delegada Ana Maria Sola: Se a mulher se sentir lesada pelo companheiro ou por alguém, procure a delegacia ou o Cras, Creas, alguns desses órgãos. A mulher precisa enxergar que ela pode e que ela tem apoio. Elas podem vir aqui e iremos conversar e dar apoio. É importante a mulher saber que ela não está sozinha. Nem ela e nem os filhos. Apoio ela sempre vai ter.

 

Quais ações a senhora pretende realizar nesse ano?

Delegada Ana Maria Sola: Temos uma cartilha com explicações e orientações. Ela foi distribuída agora no Dia da Mulher. A cartilha explica os tipos de violência, o que fazer caso sofra, o que é necessário para o registro da ocorrência, os telefones para emergência e informações do que acontece após o registro. Assim as mulheres terão um conhecimento maior, pois a maioria não sabe o que é uma violência. Muitas mulheres falam que não sofreram agressão, pois o agressor não bateu nela, mas não existe somente a agressão física. Temos a agressão psicológica, sexual, verbal, virtual, moral, são diversas. A mulher precisa ter consciência disso.

 

A senhora começou a trabalhar em São Paulo?

Delegada Ana Maria Sola: Sim. Fiquei 15 anos trabalhando em São Paulo. Trabalhei no Jardim Arpoador, Pirituba, Perus, Butantã e Ceasa. Depois desse período, vim para o interior. Primeiramente, vim para trabalhar em Itu. Comecei lá em 2007. Aí assumi aqui em Salto em 2020 e estou até agora.

 

Como iniciou a carreira e como foi a escolha dessa profissão?

Delegada Ana Maria Sola: No dia 5 de março completei 30 anos de carreira na polícia. Fiz faculdade de Direito e resolvi prestar concurso para delegada, mas essa não era minha vontade no início. À época, queria só seguir carreira na área do Direito. O meu sonho mesmo sempre foi ser psiquiatra. De certa forma, meu trabalho também está nesse meio, porque aqui você lida com tudo. Então prestei o concurso e passei. Lembro-me que passei em 13° lugar.

 

A senhora vê preconceito com as mulheres nessa área?

Delegada Ana Maria Sola: Eu não sinto. Desde o início da minha carreira não sofri nenhum preconceito. Quando comecei, eu trabalhava somente com homens e nunca senti preconceito. Acho que a mulher precisa se impor. De uma maneira educada e com respeito, mas precisa. Acho que, se você respeita, você é respeitada.

 

Como está sendo o trabalho em Salto nesses três anos?

Delegada Ana Maria Sola: Estou gostando bastante. Temos muito apoio da Prefeitura. Além dos funcionários, se precisamos de alguma coisa, podemos contar com eles. Vamos ver agora com o novo governador também. Ele está prometendo bastante coisa.

 

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