Cidades

Interligadas

Fotógrafo saltense das antigas ainda vê prazer em fazer fotos

Com mais de 60 anos registrando imagens pelas lentes de uma câmera fotográfica, Omar Melussi fala com saudade da sua experiência e lamenta as perdas com as mudanças tecnológicas

Depois de mais de 60 anos fazendo registros fotográficos dos mais variados estilos, o fotógrafo saltense Omar Melussi, que viveu de perto toda a evolução da fotografia com as novas tecnologias, ainda encontra prazer na arte de retratar a realidade. “É minha forma de expressar a arte. Quem não ganhar dinheiro com a arte tem de se auto satisfazer”, ele diz, o que para ele significa se manter ativo.
Em uma conversa com o PRIMEIRAFEIRA, que o emocionou pelas lembranças de toda uma vida, ele contou como foi seu início no mundo da fotografia e todos os ensinamentos que adquiriu ao longo dos anos, quase sempre como um autodidata, para compreender como fazer a melhor foto e ter a melhor visão de fotógrafo e ele ensina: “Eu faço fotos tentando mudar a nossa realidade, mostrando o que ninguém repara”.
Dono de um acervo riquíssimo com milhares de fotos, algumas delas compiladas para um livro ainda a ser publicado, Omar Melussi lamenta que hoje as fotos acabaram se tornando um caça-clique nas redes sociais e se tornaram sem o valor que já tiveram, fazendo todo mundo ser um fazedor de fotos, mas ele diz que é preciso separar: amadores, amadores apaixonados e profissionais.
Veja abaixo a íntegra da entrevista.

Como foi para o senhor passar por praticamente todos os processos evolutivos da fotografia?
Omar Melussi:
Quando comecei a fotografar era a fase da fotografia com filme, que tecnicamente chamamos de analógica. Ainda tenho algumas câmeras em casa e que se mantêm em condições de uso. A chegada da fotografia digital, por sua vez, foi o impulso para a popularização. Antes, era preciso ser fotógrafo ou ter muitos recursos para comprar uma câmera, enquanto hoje em dia você faz as fotos com o celular. Mesmo para quem quer comprar uma câmera simples para começar a fotografar, são preços bem mais acessíveis. Para se ter uma ideia, uma câmera Rolleiflex, utilizada por alguns fotógrafos da cidade na época, era como se fosse comprar um carro hoje. Por um lado, toda essa evolução que aconteceu foi boa, já que popularizou, mas, por outro, a fotografia como um todo caiu num patamar muito baixo.

Então a modernidade desvalorizou o trabalho do fotógrafo profissional na opinião do senhor?
Omar Melussi:
Ao mesmo tempo que a tecnologia popularizou a fotografia, acabou banalizando o trabalho. É isso. Fotógrafos sempre necessitaram de estudos, saber fotografar e estabelecer critérios para fotos. Hoje todo mundo tira foto o dia todo, principalmente as selfies. Mas, não significa que todos que tiram fotos são fotógrafos. Para se ter uma ideia, por dia são publicados alguns bilhões de fotos na internet, a maioria delas sem muito critério. Então, devemos separar a fotografia entre o público amador, que faz qualquer foto, sem critério algum; os amadores apaixonados, que buscam compreender os critérios para a melhor foto; e os profissionais. Não é condenar ou desvalorizar quem não é profissional, mas precisamos separar as coisas. Não é o meu caso, já que não sou profissional, mas fui fazer as fotos do batizado do meu neto e é praticamente impossível, diante de um mundo de gente com o celular na frente. Um profissional, para trabalhar em um evento como esse, só consegue trabalhar se tiver exclusividade. É uma situação difícil, tanto que existe uma crise muito grande no setor, justamente por essa questão.

Atividades que fomentem a prática da fotografia são importantes para mostrar a importância desse trabalho?
Omar Melussi:
Teve uma época, anos atrás, que se formou um grupo de pessoas amantes da fotografia aqui em Salto, eu inclusive, para expor os trabalhos, sobretudo no Centro de Educação e Cultura. Mas, hoje em dia, quem vai sair de casa, do conforto do sofá, para ir ver 20 ou 30 fotos, se ele pode abrir o computador e ver fotos do mundo inteiro, até melhores que as nossas? Então, a foto, apesar de todo o tratamento e todo o trabalho de quem a fez, acabou perdendo o valor e a função do fotógrafo também.

Como o senhor vê programas de inteligência artificial que são capazes de criar foto sem necessitar de câmera ou profissional?
Omar Melussi:
O ser humano, em todos os setores, quer coisas diferentes. A foto evoluiu, o cinema evoluiu, assim como tantas outras áreas, então, a necessidade por novidade proporciona o surgimento de situações como essa. Criar uma fotografia sem ter de fazer é para satisfazer, muitas das vezes, a curiosidade. Mas isso tem algum valor? Hoje, no mundo todo o fotógrafo mais reconhecido é o brasileiro Sebastião Salgado e ele não faz fotos pelo computador. Ele vai no local. Um trabalho recente dele, fez com que ele ficasse meses junto a uma tribo indígena, outros tantos meses junto de outra, e assim foi. Um trabalho de alguns anos para ser concluído. E isso tem valor porque é o real, o verdadeiro. Nada foi inventado, nada é fantasia. É um documentário de algo que existe e que se sabe lá até quando vai existir. Essas imagens criadas por inteligência artificial vão satisfazer um público, mas não são uma fotografia.

A necessidade de fotografar para os outros acaba criando um ambiente novo para a fotografia?
Omar Melussi:
O fotógrafo, quando não é do meio comercial, faz os registros como forma de informação. Lembra de um documentário sobre a Guerra do Vietnã, cuja foto ficou famosa das meninas sem roupa queimando com um soldado atrás. Uma foto dessas é para mudar a percepção do mundo para uma realidade distante. Assim como Sebastião Salgado fez os registros fotográficos da fome na África e de lugares no mundo que ainda estão preservados, mas correm riscos pela ação humana. Sua intenção é alertar para essas situações, embora para muitos, as questões não importassem tanto assim. Fotos que mostram só o bonitinho não mudam a realidade.

Então, para o senhor, a fotografia é uma forma de mudar o mundo?
Omar Melussi:
Tem quem faça com esse propósito. Eu faço tentando mudar a nossa realidade, mostrando o que ninguém repara. Mas, é algo ainda muito pequeno e difícil de ser mudado.

Como foi para o senhor começar a fotografar?
Omar Melussi:
Eu fui privilegiado. Meu pai tinha uma câmera semiprofissional americana na época, com um único botão. E para mim era uma novidade e comecei a brincar com aquilo. Anos mais tarde, quando comecei a fazer alguns bicos para ganhar dinheiro, comprei minha primeira câmera, bem simples, mas um pouquinho melhor que a do meu pai. É uma câmera inglesa que tenho guardada até hoje. Para fotografar com ela, era preciso saber calcular distância, luminosidade e por aí vai, totalmente diferente dos celulares de hoje em dia que basta apertar o botão e ele ajusta automaticamente. Desde então, nunca mais parei. Nunca fiz um curso profissional e sempre fui um autodidata. Passei por várias épocas. Um momento eu gostava de fotografar paisagens; outro momento fiz macro fotografias, algo bem difícil; esportes; passarinhos; e hoje, encostei as câmeras poderosas e comprei uma câmera pequeninha, fácil de disfarçar e ando pela rua tirando fotografia do real. Eu não peço para alguém posar, caso contrário perde a naturalidade. Eu tiro sem a pessoa perceber. Se ela estiver dormindo, coçando a orelha ou chupando um sorvete, o que for, é a realidade.

Foto significa necessariamente beleza?
Omar Melussi:
Um dos grandes problemas que eu vejo é que as pessoas já têm programada na cabeça que as fotos precisam ser bonitas. Todo mundo quer uma arte florida, um passarinho colorido, um sorriso bonito de uma mocinha, mas existe muito mais coisas a ser registrado. Não que seja feio, mas que talvez não seja bonito. E isso cria um conceito de o porquê mostrar algo que não é bonito. A fotografia, entretanto, não é para mostrar apenas o belo. As fotos não precisam ser necessariamente bonitas. Elas precisam transmitir aquilo que o fotógrafo pensa. Infelizmente, hoje em dia e, sobretudo o público jovem, busca o que é mais fácil, cômodo e que dá maior visibilidade. Então, ele não vai querer fazer algo diferente. A preferência é por uma selfie para ter o maior número de curtidas. Hoje em dia quase não se faz fotos para agradar a si próprio e sim para agradar aos outros. Isso não evolui a pessoa, já que ela fica na dependência da apreciação dos outros. Eu faço fotos na rua e ninguém acha bonito e não tem de achar bonito mesmo, porque não é. Eu faço esses registros porque é algo que me encanta.

E como foi para o senhor mudar esse foco do belo para mostrar a realidade do que vê?
Omar Melussi:
Eu detestava fotografar pessoas, já que elas estão em todo o lugar. Pensava no que levava alguém a fotografar pessoas se a natureza tinha tanta coisa mais bonita. Porém, numa palestra durante um evento, se propôs um trabalho entre os participantes para fazer fotos na rua. Acabei indo e fiz algumas fotos, entre elas, de um homem com uma camisa do Corinthians e quando ele viu que eu estava com a máquina fotográfica, pegou a camisa e beijou o escudo. E eu nem pensei em fotografar a imagem dele, mas fiz esse registro, que acabou escolhido para uma exposição. De repente, passei a gostar desse estilo, mas sem que as pessoas posem para as fotos e sim mostrando a espontaneidade.

O que a fotografia representa para o senhor?
Omar Melussi:
É um hobby para mim. Algo que curto fazer, olhar, tratar, ver o que aquilo representa e incluir essas fotos em meu arquivo. É minha forma de expressar a arte. Quem não ganhar dinheiro com a arte tem de se auto satisfazer.

Os fotógrafos, no futuro, talvez sejam reconhecidos como os grandes pintores são hoje?
Omar Melussi:
A arte, e a foto pode ser classificada como, passa por uma evolução. Teve um pintor francês, o qual não lembro o nome agora, que fazia fotos de várias paisagens bonitas, mas nunca tinha tido reconhecimento algum. Era mais um no meio de tantos outros. Num dado momento, ele teve uma explosão de raiva e começou a jogar tinta na tela, formando aquelas imagens malucas e, de repente, ficou famoso. Mas por quê? Porque fugiu do padrão. Isso vale também para outras áreas. Houve uma época em que a música de sucesso foi Beethoven, num outro momento o sucesso foi “Éguinha Pocotó”. Mas isso porque o público quer novidade. Não que um seja melhor que o outro, mas atendem as situações. E na fotografia isso é similar. Nos concursos de fotos, salões de arte ou exposições, para se destacar, provavelmente terá de apresentar algo meio maluco do padrão que aprendemos a fazer como certo. Na arte não existe certo e errado. Nunca.

Como o senhor vê o futuro da fotografia?
Omar Melussi:
São épocas. O profissional precisa estar se especializando. Quem não é, vai continuar brincando de fazer fotos e os curiosos, como eu, vão fazendo os registros à sua maneira, tentando se aperfeiçoar. Tem um ditado que diz que o fotógrafo, quando não tem sucesso, ou vai escrever sobre fotografia ou vai dar aula sobre fotografia. Hoje em dia ainda podemos acrescentar que quem não tem sucesso como fotógrafo, pode ficar na frente do computador brincando de criar fotos com a inteligência artificial.

COMPARTILHE