Marcus Zecchini, do Anglo, avalia que a guerra Israel-Hamas deve arrefecer por causa do enfraquecimento do grupo extremista, mas não vê cessar-fogo breve e nem para Rússia e Ucrânia
Ao ver explodirem conflitos como a guerra entre Israel e o grupo extremista Hamas e entre a Rússia e a Ucrânia, que vêm monopolizando as atenções do mundo todo hoje, o cidadão pode achar que só essas disputas preocupam, mas o professor de Geografia do Anglo, Marcus Zecchini, que estuda o assunto, diz que há em atividade pelo menos 40 conflitos no planeta.
Zecchini revelou, em entrevista ao PRIMEIRAFEIRA esta semana, que não há possibilidade de cessar-fogo ou acordos de paz para breve nos dois principais conflitos, mas admitiu que o Hamas está enfraquecido e que isto deve amenizar a guerra nos próximos dias. Ele também revelou que há muitos interesses por trás dessas guerras e afirmou que é isto que as incentiva a existir.
De acordo com o professor, as diferenças entre Israel e o Hamas existem desde 1947 e nunca esses dois segmentos ficaram muito tempo distantes da guerra. O último conflito mais contundente foi 2014. “Poderíamos até falar que essa disputa começou nos anos 2.000 ou 3.000 antes de Cristo, mas o foco está no contexto atual, após a formação de Israel como um Estado, em 1947”, afirmou.
Na entrevista ao PRIMEIRAFEIRA, Zecchini explicou o contexto que motivou o início dos ataques nos dois principais conflitos, as possibilidades de amenização diante das forças de ambos os lados e tranquilizou os brasileiros, pois não vê a possibilidade de o país ser envolvido nas duas guerras. Os reflexos são indiretos, pois Rússia e Ucrânia são grandes produtores de alimentos.
Veja abaixo a íntegra da entrevista.
Quais os motivos que levaram à eclosão do conflito entre Israel e o grupo Hamas na Faixa de Gaza em outubro?
Marcus Zecchini: Quando falamos desse conflito entre Israel e Hamas, estamos falando de um conflito territorial que vem desde 1947. Poderíamos até falar que essa disputa começou nos anos 2.000 ou 3.000 antes de Cristo, mas acho que o foco da sua pergunta está no contexto atual, após a formação de Israel como um Estado, não é? Em 1947, foi proposta a criação de dois Estados na região da Palestina, que, até então, era um Estado só e independente. A ideia surgiu da Organização das Nações Unidas, a ONU, que sugeriu ter essa divisão entre Israel e Palestina. Porém, já em 1948 houve uma invasão de Israel na região da Palestina. A Palestina acabou sendo diluída em dois pequenos territórios, os quais conhecemos hoje como Cisjordânia, na fronteira com a Jordânia, e onde estão cidades como Belém; e outro pequeno território conhecido como Faixa de Gaza, que faz fronteira com o Egito. Os conflitos perduram desde então, ora com embates mais intensos, ora com estabilidade, como aconteceu em 1993, com o Acordo de Oslo, no qual os Estados Unidos intermediaram um acordo de paz entre os dois Estados.
O que motivou essa retomada do conflito?
Marcus Zecchini: Esses ataques do Hamas foram uma resposta à Israel, que estaria, literalmente, genocidando palestinos. Israel tem um sistema de colonato com três grupos de cidades. As cidades “A” são administradas pela Palestina, as cidades “B” são administradas politicamente pelos palestinos, mas a segurança é feita por Israel; e tem as cidades “C”, que são cidades de palestinos, mas administradas totalmente por israelenses. Esses colonos estavam se dirigindo até essas cidades administradas pela Palestina e matando pessoas. O que o Hamas fez foi responder a esses ataques. Ambos foram atos terroristas e brutais, claro, que, obviamente, devem ser condenados por todos.
O Hamas é um grupo terrorista de fato?
Marcus Zecchini: O Hamas é um grupo que tem um braço armado e um braço político e eles administram a região da Faixa de Gaza. O grupo terrorista Hamas foi o responsável pelos ataques, enquanto o grupo político do Hamas administra a Faixa de Gaza com um cunho social e governamental. Acontece que o Hamas é tratado por diversos países como um grupo terrorista só e Israel tem como política não negociar com terroristas.
Há interesses externos envolvidos nesses ataques?
Marcus Zecchini: Tem. O Hamas não reconhece a existência de Israel e quer a reconquista do território, que, antigamente, era a Palestina. Mas há outros interesses por trás, já que a região litorânea de Israel, que inclui a Faixa de Gaza é rica em petróleo e gás natural. Por outro lado, países próximos, que apoiam a causa Palestina e não reconhecem a existência do Estado de Israel, acabam se beneficiando do conflito para a venda de armas. O Hamas, para se ter uma ideia, é abastecido em armas pelo Irã e, provavelmente, pela Turquia.
O que podemos esperar do desenrolar desse conflito?
Marcus Zecchini: Um cessar-fogo oficial para selar a paz é muito difícil. O que vem acontecendo é uma amenização dos conflitos nos últimos dias. O Hamas tomou uma medida, que, acho eu, foi impensada. Eles avançaram fortemente e Israel respondeu. Israel nunca tinha perdido territórios de 1947 para cá e perderam uma área relativamente grande agora. Por isso, promoveram um ataque violentíssimo. Foram quase 7 mil bombas lançadas na Faixa de Gaza e isso esfacelou as forças do Hamas. A tendência é uma redução dos conflitos pelo enfraquecimento do Hamas. Israel tem muito apoio militar de outros países, então é um duelo de armas infinitas contra um grupo que demora a se armar. Eu acredito que entre num hiato pelos próximos sete ou oito anos. Antes dos ataques deste ano, o último grande conflito entre eles tinha sido em 2014, ou seja, foram quase dez anos até haver outra revolta.
Outro conflito vivenciado pelo mundo recente envolve Rússia e Ucrânia. Quais os motivos dessa outra guerra?
Marcus Zecchini: Historicamente, Rússia e Ucrânia sempre foram muito próximos. A partir do fim da União Soviética, há a separação dos poderes, com o surgimento dos países, apesar de a Ucrânia sempre ter tido uma população etnicamente russa, pelas proximidades linguísticas, culturais e territoriais. Em 2014, aconteceram, talvez, os grandes atritos que se refletiram em 2022 e que seguem até agora. A Ucrânia tinha interesse em se desvencilhar da esfera russa e se aproximar da União Europeia, mas a Rússia não via isso com bons olhos e resolveu anexar a região da Criméia, de maioria populacional russa. Esse conflito se resolveu de forma rápida, uma vez que a Rússia já possuía bases militares na região. Em 2022, aconteceu algo semelhante. O governo do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky sinalizou com uma aproximação da União Europeia, o que incomodou os russos, que alegaram uma tentativa de massacre da população etnicamente russa da região do Dombass, que é rica em carvão mineral. O presidente russo Vladimir Putin viu nisso uma oportunidade para anexar também essa região, como forma de proteger a população etnicamente russa dos ataques ucranianos. Porém, diferentemente de 2014, a Ucrânia tinha um aparato militar maior, por já imaginar que isso poderia acontecer e por contar com apoio em armamento e de dinheiro da própria Otan, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, através de Estados Unidos e do Canadá. Inclusive, quase que o Brasil acabou entrando nesse jogo, por possuir uma parceria com a Alemanha para a produção de veículos blindados. A Alemanha queria enviar alguns dos veículos que estavam em território brasileiro para a região dos conflitos. No fim das contas, o Brasil acabou ficando neutro nessa história, apesar dessa situação tensa.
E o que podemos esperar também do desenrolar desse conflito?
Marcus Zecchini: Esse conflito está muito mais longo do que a Rússia esperava e trouxe muitos problemas para todo o mundo, uma vez que ambos os países são grandes produtores de milho e trigo, o que impacta no preço dos alimentos. Não vejo uma solução breve para esse conflito, especialmente pela proximidade com as eleições russas, que acontecem no primeiro semestre de 2024, para as quais o Putin tem utilizado o conflito como propaganda.
Outro conflito que ocorre há décadas é entre as Coreias do Sul e do Norte. Qual a situação entre esses países?
Marcus Zecchini: A Coreia do Norte é um país com um regime ditatorial de cunho socialista, enquanto a Coreia do Sul é um país democrático. Essa diferença começou ao final da Segunda Guerra quando o Japão foi obrigado a retirar suas tropas da região e houve a partilha do território entre os soviéticos (com a parte Norte) e os Estados Unidos (com a parte Sul). A reunificação ali, porém, é muito difícil. A Coreia do Norte tem um regime ditatorial basicamente familiar e hereditário. Lá, o governo assumiu com uma política ideológica que dificulta as relações. Essa atuação sempre foi conhecida como uma pária internacional, por ser uma ditadura e extremamente fechada para o resto do mundo. Porém, em 2006 iniciou-se um projeto nuclear por lá, o que tornou o país o centro das atenções. Por alguns anos houve alguma amenização dessa situação, com os presidentes tendo participado inclusive de um ato simbólico dos presidentes das Coreias atravessando as zonas desmilitarizadas. E até o ano passado havia um certo diálogo dentro das Coreias, mas o atual presidente sul-coreano, Yoon Suk-yeol é totalmente anti-Coreia do Norte e tem como política não dialogar com os norte-coreanos. Por esse motivo, a Coreia do Norte volta com uma ofensiva contra a Coreia do Sul. Então testes com bombas voltaram a se intensificar. Embora, eu ache que a curto prazo essa instabilidade deve se manter. Um dado interessante é que as Coreias estão em guerra desde a década de 1950. Há um hiato nessa guerra, mas não foi assinado nenhum acordo de paz.
Além desses, há outros conflitos iminentes que possam vir a ocorrer em redor do mundo ou se concentra neles?
Marcus Zecchini: Tem conflitos e provocações que acontecem, por exemplo, entre Paquistão e Índia. Em 1947, houve a independência da Índia, que até então era uma colônia britânica, para separar os grupos étnicos. Dessa forma, Paquistão e Bangladesh ficaram com a população de maioria islâmica e a Índia com a população de maioria hindu. Há uma região conhecida como Caxemira, que está entre o Paquistão e a Índia, com maioria étnica paquistanesa e islâmica, mas está em território indiano e pede autonomia. A Índia, porém, não cede. Há ainda um conflito recente entre Armênia e Azerbaijão, que também tem ligação com o fim da União Soviética. No Azerbaijão existe um território chamado Nagorno-Karabakh, que é um enclave separatista de maioria armênia. Em setembro, conflitos pesados aconteceram e os armênios foram retirados de lá. Muito provavelmente em 2024 a Armênia abra mão desse território para que ele então seja anexado pelo Azerbaijão. Há ainda conflitos na região do Cáucaso, outras regiões da Rússia próxima à Geórgia e o Azerbaijão, que também querem autonomia; na América Latina temos os conflitos internos envolvendo os cartéis no Equador; as fronteiras entre Estados Unidos e México; tem movimentos separatistas na Itália, Bélgica, Espanha e no próprio Reino Unido, após sua saída da União Europeia; fora os golpes militares na África. Eu faço um trabalho com os meus alunos e nesse semestre catalogamos pelo menos 40 conflitos em redor do mundo.
Qual o papel do Brasil em meio a tantos conflitos?
Marcus Zecchini: Historicamente, o Brasil é bastante neutro nesses contextos envolvendo guerras e geralmente intermedeia as situações. Tanto que recentemente o Brasil foi até o Conselho de Segurança da ONU com propostas para a estabilização entre Israel e o Hamas, mas mesmo com 12 dos 15 membros terem sido favoráveis e outros dois países se absterem, o voto contrário dos Estados Unidos, com um claro interesse, impediu. Territorialmente, para o Brasil, nada deve acontecer. O impacto deve ser mesmo econômico. Na questão do conflito entre Ucrânia e Rússia, o Brasil segue neutro. Em relação à Rússia, há o envolvimento no Brics (parceria entre cinco das maiores economias emergentes do mundo: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e em relação à Ucrânia pelos commodities produzidos, que, se deixam de produzir, somos afetados indiretamente em relação ao aumento do preço. O que o Brasil pode fazer é traçar alianças com outros países para resolver esses conflitos. Aliás, esse é o papel do Brasil, um país pacificador.