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O âmago

Não sou escritora. Mas escrevo todo dia.

E dizem que faço isso bem. Então sou escritora. Talvez.

O que faz da minha palavra minha? O que faz ela querer ser lida? Bom, eu faço rima e escrevo palavra bonita. Mas não é só isso.

A verdade mais sincera é que eu não sei. Não me peça para te ensinar, não vou saber. Não aprendi.

Melhorei, com certeza. Teci meu repertório com vocábulos ricos. Li muito. Mas já nasci com “isto”. Um “algo”. Talvez um dom. Ou talvez uma necessidade voraz, profunda, vital: se não cuspo, a palavra me engole. Escrevo todo dia. Gosto do barulho das teclas, gosto do texto tomando forma, das imagens que crio e associações que faço sem perceber. Meu inconsciente trabalha muito, demais. Talvez esse seja o segredo. Talvez deva permanecer segredo.

Não devo dizer por aí que sou uma fraude, que não sou eu quem escrevo, mas alguém, algo por trás de mim. Uma abstração, um âmago oculto. Me pergunto se os heterônimos de Fernando Pessoa eram assim. Se conviviam com ele. Se também eram silenciosos e ocultos, ou se debatiam filosofia enquanto tomavam chá. Não gosto de chá. Prefiro café, mas há algo tão sofisticado e fino em saborear um líquido que beira a insipidez. Tomo, de vez em quando, por pura e doida vontade de me sentir como alguém que toma chá.

E talvez eu escreva todo dia por pura vontade de me sentir como uma cronista de jornal, sentenciada a inventar histórias, resgatar memórias, fazer qualquer reflexão digna de um quarto de página. Correndo contra o tempo e espremendo do suco (ou chá) da criatividade.

A verdade é que meu âmago criativo trabalha sozinho e espontaneamente. Se tomássemos chá juntos – te asseguro que “isto” toma chá – poderia definir horários. Todo dia às dez da noite, compromisso fechado, dedos a postos: escreva. Vai. Mas eu não tomo chá, não gosto de chá e só tenho minha voz em mim.

Às vezes, começo com meu timbre frágil e o âmago toma conta, começa a escrever sozinho, assume o comando. Outras vezes, paro na primeira linha e fecho o computador. Sou uma farsa. Quem escreve é meu âmago que toma chá, ele sabe o que faz, e ele não marca hora. Vem em horários inconvenientes, como numa palestra, numa refeição, na madrugada. Mas “isto” trabalha bem, não tenho direito de reclamar.

Leio e releio textos antigos, procurando as partes que escrevi, e as partes que o âmago escreveu. Quando encontro algo feito por uma escritora, já sei quem foi. Me contento em ser sua sombra, afinal sou eu quem ganha os holofotes. Sou uma fraude. Mas também escrevo todo dia. E dizem que faço bem. Então sou escritora.

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