Em um belíssimo texto – “A personagem do romance” – Antonio Candido defendeu a ideia de que a literatura tem como função oferecer ao leitor “um conhecimento mais completo, mais coerente do que o conhecimento fragmentário que temos dos seres”. Partindo dessa premissa, podemos nos perguntar: de que verdade trata a literatura?
Para responder à questão, poderíamos fazer uma comparação entre a arte literária e a área das ciências humanas. Tome-se como exemplo um belo livro de história; pode ser o clássico de Keith Thomas, “Religião e declínio da magia”, sobre crenças populares na Inglaterra nos séculos XVI e XVII. Por melhor que ele seja, está sujeito a revisões posteriores, uma vez que a ciência histórica pode vir a descobrir informações que Thomas não possuía quando escreveu seu livro. Ou pode ainda, interpretar de forma diferente os mesmos dados de que dispunha o escritor quando da feitura de sua obra. Religião e declínio da magia “paga tributo” aos dados, à verificação empírica, à verdade factual. Talvez não deixe nunca de ser um clássico, mas essa condição advirá do método empregado na pesquisa histórica do fenômeno religioso, e não necessariamente da precisão de suas informações e interpretações. É inevitável que isso ocorra porque o conhecimento histórico está em constante transformação, seja no sentido do aprimoramento, seja no de rupturas “revolucionárias”, para aludir ao livro de Thomas Kuhn.
Mas as considerações acima não se aplicam a um bom livro de literatura. Não há justificativa que leve à reescrita, por exemplo, do primeiro parágrafo de “A metamorfose”, de Franz Kafka (e do livro todo, evidentemente).
Suas informações não estão sujeitas a verificações empíricas, nem devem estar de acordo com esta ou aquela compreensão científica a respeito de insetos ou noites maldormidas. Assim, ao procurar abordar o estranhamento, a alienação ou a solidão da vida moderna, narrando a transformação de um homem em um inseto, o romance de Kafka veicula uma espécie de “verdade” que continuará válida enquanto a sensibilidade dos leitores assim o quiser.
Pode ser que daqui a cinquenta anos Kafka seja considerado um péssimo escritor e que sua criação literária seja tida como “ingênua”, “inadequada”, “ultrapassada” etc. Mas não será o caso de reescrevê-la, até porque pode bem ser que, passados mais cinquenta anos, ele volte a ser tido como “genial”, “importante”, ou “escritor que melhor descreveu o absurdo da (então) modernidade”.
Essa é a vantagem da literatura. O conhecimento que ela transmite tem um status diferente do conhecimento científico. Sua verdade é subjetiva, e por isso tem o poder de tocar de forma diferente diferentes gerações, públicos, indivíduos. Por isso podemos ler com proveito, até hoje, um Machado de Assis, mas não necessariamente um livro de História de sua época.