Logo após o incidente, o comerciante afirmou que levantaria tudo de novo e continuaria na atividade, mas hoje entende que não seja mais viável pela concorrência e por sua saúde debilitada
“Falar do Armazém ainda me emociona muito”.
Foi com lágrimas nos olhos que Roberto Ferrari, o Bertinho Ferrari como é mais conhecido, se lembrou do aniversário de dez anos do incêndio que destruiu o Armazém Popular, completados na quarta-feira (31). Não é à toa a ligação emocional dele: foram 58 anos trabalhando diariamente com o atendimento ao público, uma de suas paixões, e vendendo os mais variados itens, até que o fogo consumiu o prédio, um dos ícones da cidade. Em conversa com a reportagem do PRIMEIRAFEIRA, Bertinho lembrou das quase seis décadas em que não apenas trabalhou, mas fez do Armazém a sua história.
O ritmo empreendedor ainda é mantido diariamente, mas sem a mesma intensidade. Hoje, os problemas físicos pedem um cuidado maior e, possivelmente, não permitiriam o contato diário com os clientes, que Bertinho sempre prezou. “Na época eu tinha 70 anos e ainda ficava em pé o dia todo. Hoje tenho 80 e não tenho condições mais. Já tive vários problemas de saúde. Estou com um probleminha na perna que me gera uma dificuldade para andar. Tudo tem um limite e tudo tem um final”, afirmou.
O incêndio, entretanto, abreviou o que Roberto Ferrari considerava iminente. Para ele, o Armazém talvez já teria fechado as portas nessa última década devido à concorrência de grandes redes de supermercados e atacados que chegaram na cidade no período. “Eu acredito que talvez já tivéssemos encerrado as atividades, exatamente por conta da concorrência. Antigamente nós comprávamos mercadoria dos chamados “viajantes” e os atacadistas vinham entregar dois ou três dias depois. Hoje não existe isso mais. E eu acredito que, nesses dez anos, eu tivesse fôlego para continuar”, contou.
Naquela época, as vendas tinham se reduzido bastante, mas ainda mantinham as atividades do ponto comercial. O Armazém, que chegou a oferecer emprego a 25 pessoas de uma só vez, quando encerrou sua história, tinha apenas 12 funcionários. “Quando aconteceu o incêndio, cerca de 60% das minhas vendas eram para as indústrias. Os outros 40% eram para o público em geral, porque grande parte desse público eu já tinha perdido para os mercados tradicionais. Eu tinha dois veículos para as entregas, mas, no final, apenas um dava conta tranquilamente”.
A dor da perda amenizou, mas a lembrança de toda a história vivida no Armazém faz parte dos pensamentos de Bertinho constantemente. “Com o passar do tempo, ameniza um pouco, mas o sentimento de perda é muito grande. Pode parecer exagerado, mas para mim aquilo foi uma tragédia. Afinal, foi o local onde trabalhei a minha vida toda, com o qual pude criar meus filhos e fazer meu pé de meia. Com o tempo a dor acaba sendo amenizada, mas ainda sonho que estou atendendo no Armazém”.
E para quem possa imaginar que um dia o Armazém Popular possa ser reconstruído, Bertinho tratou de colocar um ponto final na história. “Até tive, lá atrás, a intenção de construir um supermercado. Cheguei até a comprar um terreno, mas acabei pensando por um longo tempo e conversei com meus filhos sobre a intenção de dar continuidade nos negócios. Mas, eles não quiseram trabalhar comigo. Não tenho essa possibilidade. O Armazém será parte da história só”, completou.
Prédio histórico tombado chegou a ser atração turística
Mais do que um estabelecimento comercial, o Armazém Popular estava localizado em um prédio centenário, construído em 1908 como o Grande Bazar Saltense, fazendo jus ao nome, por vender de tudo. E para muitos, visitar o Armazém era um passeio a se fazer, ainda mais para quem vinha de fora.
“Os visitantes queriam conhecer o atendimento de balcão. Naquela época, os jovens com seus 30 anos não sabiam o que era esse tipo de atendimento. E o atendimento era o que eu mais prezava”, contou o proprietário Roberto Ferrari, o Bertinho.
O prédio, que chegou a ser tombado como patrimônio histórico, foi divulgado por muito tempo como uma das atrações turísticas da cidade. “O Valderez (Valderez Antônio Bergamo Silva) tinha na Secretaria de Cultura um panfleto que distribuía para quem vinha de fora como se fosse uma atração turística. E realmente era. Muitos visitantes vinham, aos sábados, fazer uma visita. Uma das tradições era vender queijos. Eu chegava a vender 200 peças por semana, porque vendia barato e era de qualidade. Era uma de nossas atrações”, recordou Bertinho.
Presidente da República e outros ilustres visitaram local
Um coletor federal, que depois se tornou deputado federal, presidente da Câmara Federal e por fim presidente da República, já esteve visitando o Armazém Popular. Essa é uma das recordações de mais orgulho do proprietário Roberto Ferrari.
“Já recebi a presença de um presidente da República no Armazém. Ranieri Mazzilli, que foi deputado e chefe da coletoria federal (órgão responsável por arrecadar e contabilizar as rendas internas da União nas localidades), certa vez veio até Salto fazer uma vistoria na coletoria da cidade, que funcionava em um prédio abaixo da residência dos meus pais. O coletor era amigo do meu pai e levou Ranieri até o Armazém. Posteriormente à visita, ele se tornou deputado e presidente da Câmara Federal e assumiu a Presidência da República em meio à transição de governo de João Goulart”, contou.
Além dele, nomes como Geraldo Alckmin (PSB, atual vice-presidente da República) e Fausto Silva também estiveram visitando o Armazém. “Também já me visitou duas vezes Geraldo Alckmin, o Faustão esteve no Armazém, quando veio gravar um conteúdo na cidade. Ele ficou umas duas horas e lotou de pessoas em volta do Armazém querendo vê-lo. O Geraldo veio duas vezes, sendo que, na segunda, ele pediu ao Geraldo (Garcia, do PP, prefeito da época) que queria vir até o Armazém. Isso pra mim foi marcante”, recordou.
N.R.: Ranieri Mazzilli era coletor fiscal de Sorocaba e Jundiaí. Ele foi o presidente da República em duas oportunidades, a primeira de 25 de agosto a 7 de setembro de 1961, diante da renúncia de Jânio Quadros e ausência de João Goulart; e a segunda, entre 2 e 15 de abril de 1964, diante da cassação do mandato de João Goulart pelo Congresso e a posse de Castello Branco.
Destruição do ponto comercial chocou a cidade na época
O incêndio que destruiu o Armazém Popular aconteceu na noite de 31 de janeiro de 2014. Era uma sexta-feira e o expediente já havia acabado quando o fogo se iniciou. Rapidamente, todo o espaço foi consumido pelas chamas que atingiram, inclusive, prédios vizinhos. O incidente não deixou feridos e as investigações apontaram para problemas nas instalações elétricas.
Bombeiros de Itu e de Sorocaba foram chamados para ajudar a controlar o fogo, numa ação que durou toda a madrugada e adentrou a manhã seguinte. A Defesa Civil condenou o prédio, que sofreu queimaduras em toda a sua estrutura. Algum tempo depois, ele foi colocado abaixo.
O PRIMEIRAFEIRA acompanhou os trabalhos de combate ao fogo na época e o proprietário, Roberto Ferrari, o Bertinho, chegou a falar em reconstruir o Armazém, mantendo o visual tradicional, mas devido à necessidade de demolição, à concorrência e aos problemas de saúde dele, a ideia acabou não se consolidando.
O secretário de Cultura da Prefeitura à época, Marcos Pardim, falou em sentimento de sofrimento e contava com a recuperação do prédio. “É um imenso sentimento de perda, de tristeza. Todos os que preservamos e valorizamos a importância da memória na formação da nossa identidade cultural sabemos o que significa a dilapidação do patrimônio histórico. Lamento profundamente e me solidarizo com a família, além de ter colocado a Secretaria da Cultura à inteira disposição para o diálogo e o encontro de possíveis caminhos para a recuperação”, disse.
O sentimento foi compartilhado pelo então prefeito, Juvenil Cirelli (PDT). “Parte da história de Salto foi queimada. É uma perda econômica, social, cultural e histórica. É até difícil achar um argumento para descrever a situação. Quanto a uma possível reconstrução, aguardo um parecer do Bertinho para ver o que é possível ser feito”, disse à época.