Arilton Assunção vê a necessidade de uma nova formação de público após o período da pandemia e critica o racismo também
São mais de três décadas dedicadas à dança em uma carreira inspiradora para quem vive da arte. O diretor Geral e Artístico da Faces Ocultas Companhia de Dança, Arilton Assunção, conversou com a reportagem do PRIMEIRAFEIRA para falar sobre a retomada das atrações culturais após o auge da pandemia, na qual muitas companhias ainda penam para conseguir apoio ou recursos para manterem suas atividades. “Nós quase morremos. E alguns morreram, na verdade. Muitas escolas fecharam as portas. Estamos caminhando para uma retomada, mas ainda é tudo muito difícil. Eu acho que a pandemia deixou um certo relaxamento, um comodismo e até um certo medo nas pessoas. Estava aquela sede para que tudo reabrisse, mas quando isso ocorreu não foi aquela volta dos teatros lotados”, lamentou-se ele.
Para o diretor, a dança é uma forma não apenas de se expressar, mas de conhecer histórias e culturas. Porém, o público atualmente prefere outras formas de entretenimento, que acabam enfraquecendo o debate cultural e, especialmente, as companhias de dança. “É a cultura de hoje em dia. Falar do gordo, do preto, da mulher, das religiões… tudo isso virou comédia. Não se vê mais monólogos sobre Shakespeare ou Ariano Suassuna. Primeiro, porque para fazer um monólogo desses, precisa estudar. Estudar interpretação de texto, teatro, dicção e muitas coisas mais. Ligar a câmera e fazer um monte de piada e palhaçada é mais fácil. E, infelizmente, o público está consumindo esse tipo de trabalho como se fosse Cultura. E isso complica para nós”.
As queixas do diretor não ficam apenas em relação à falta de público e à concorrência com produtos sem a mesma qualidade artística e cultural, Arilton Assunção entrou em um debate que vai além da dança ou da arte: o racismo. Ele disse que o racismo está presente no cotidiano e parece ser ainda maior em algumas formas de arte. “A dança era racista, preconceituosa e elitista. E até hoje é, embora existam mais possibilidades (para as pessoas negras)”.
Veja a íntegra da entrevista abaixo:
Como tem sido essa retomada do teatro, da dança e de outros movimentos no pós-pandemia?
Arilton Assunção: Nós quase morremos. E alguns morreram, na verdade. Muitas escolas fecharam as portas. Estamos caminhando para uma retomada, mas ainda é tudo muito difícil. Eu acho que a pandemia deixou um certo relaxamento, um comodismo e até um certo medo nas pessoas. Estava aquela sede para que tudo reabrisse, mas quando isso ocorreu não foi aquela volta dos teatros lotados. Nesse meio, a tecnologia ajudou muito, com muitas apresentações online e as pessoas ainda estão numa zona de conforto de não querer ir ao teatro se podem assistir em casa, pela internet. A pandemia nos obrigou a ter uma nova formação de público. Tudo ainda é muito novo.
E como atrair novamente o público para o teatro?
Arilton Assunção: Para a formação de público, precisamos de acesso. Quando digo isso me refiro a teatros mais em conta, pautas gratuitas, espaços alternativos para acolher a Arte e grupos interessados em fazer Arte em espaços alternativos. Eu preciso de grupos que façam sua Arte na praça, porque muitos sequer vieram ao teatro alguma vez. Nesse momento eu posso distribuir um panfleto convidando-o para vir ao teatro, de forma gratuita. Mas, para isso, o artista precisa de apoio. E precisamos de coisas novas. É algo que estamos tentando, a passos de formiguinhas ainda, infelizmente. Por isso digo que é preciso acesso para que as companhias mostrem suas produções. A Mostra Estudantil de Teatro é um sucesso há anos. Por quê? Porque há um ônibus que vai nos bairros buscar as crianças, trazê-las ao teatro, as fazem conhecer o prédio, as peças. Esse é apenas um exemplo, mas há outros, como o “Hoje é dia de arte” em que a Prefeitura levava dança de qualidade, teatro de qualidade, música de qualidade nos bairros. O público gosta e se interessa. Só não há acesso.
Qual a importância do retorno da utilização da Sala Palma de Ouro, após quase um ano fechada para reforma?
Arilton Assunção: O teatro (da Sala Palma de Ouro) é essencial, ainda mais para uma cidade que movimenta tanto a Cultura. E não só ele. Por isso é necessária uma atenção aos espaços menores, como foi feito no (Teatro) Verdi. Salto respira Cultura. Temos muitos grupos de teatro, dança, música, o movimento dos slams de poesia, que estão surgindo, entre outros. A Palma de Ouro nem deveria ter ficado fechada, isso porque as grandes produções precisam de grandes salas. É legal, intimista e pode-se fazer coisas muito bonitas em teatros menores, mas acabamos tendo de encostar as grandes produções por falta de espaço.
Por que não há investimentos na Cultura e em outras áreas?
Arilton Assunção: É uma resposta que não tenho. Não sei por que isso acontece. E olha o nível das empresas que temos aqui em Salto, algo que grandes cidades não têm. Já tentei várias vezes e quando o Faces Ocultas completou quinze anos tivemos o apoio de uma grande empresa local para produzirmos um espetáculo com toda estrutura, mas foi só. Às vezes, eu acho que é algo cultural das cidades do interior. É aquela coisa da cidade operária, que a bisavó trabalhou na Brasital e fim. Não há uma continuação. E sua avó, sua mãe, seus filhos? Eu acho que não há mais nenhum italiano em Salto. Se tiver são netos ou tataranetos e ainda assim muito presos nessa mesma história. Os jovens crescem dessa maneira, sem interesse.
Grandes artistas lotam a Sala Palma de Ouro, mas não acontece com a dança ou teatro, mesmo gratuito. A que se deve?
Arilton Assunção: Há uma questão de mau gosto. Tenho uma amiga do Rio de Janeiro e lá também é assim. É a cultura de hoje em dia. Falar do gordo, do preto, da mulher, das religiões… tudo isso virou comédia. Não se vê mais monólogos sobre Shakespeare ou Ariano Suassuna. Primeiro, porque para fazer um monólogo desses, precisa estudar. Estudar interpretação de texto, teatro, dicção e muitas coisas mais. Ligar a câmera e fazer um monte de piada e palhaçada é mais fácil. E, infelizmente, o público está consumindo esse tipo de trabalho como se fosse Cultura. E isso complica para nós. Não é desmerecer, mas esse tipo de atração lota as salas. E quem poderia patrocinar a Cultura estará na plateia. Algo que é cultural e já aconteceu comigo, enquanto diretor do Faces Ocultas. Há uns dez ou quinze anos, o Theatro Municipal de São Paulo foi reformado e uma das companhias convidadas para dançar na gala de reabertura foi o Faces. Mais de mil pessoas e fomos aplaudidos de pé. Quando terminou, algumas pessoas vieram me cumprimentar e descobri que fretaram um ônibus de pessoas de Salto que nunca haviam ido nos ver na Sala Palma de Ouro. Tudo isso porque era chique estar no Municipal. Elas, talvez, nem tenham ido ver o Faces Ocultas. É uma falsa plateia às vezes. O legal é estar, mesmo que as vezes não queira estar. Faz parte do processo.
Um trabalho dentro das escolas, desde pequenos, envolvendo grandes obras, pode trazer um novo público ao teatro?
Arilton Assunção: É fundamental. Esse é o caminho. Se não os trazemos, que possamos levar essa cultura até eles. O problema é que seríamos barrados por diretoras e professoras. Certa vez fizemos uma apresentação temática envolvendo a cultura nordestina e uma senhora chegou para a secretária, dizendo que era o último ano da filha dela na escola, porque ela não pagava as aulas para ver a filha dançando de nordestina e sim de bailarina. Essa senhora é diretora de escola. Em outra vez, duas professoras da cidade falaram que acharam a peça “O Pagador de Promessas” pobre. Ela queria o quê? Uma roupa com paetês e strass? Acho que ela nunca leu e não tem o mínimo conhecimento. Um terceiro caso, também uma professora comparou uma cena de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, com um trecho de “O Pequeno Príncipe”. Se é uma pessoa que não tem esse conhecimento até aceitamos, mas quando se trata de professores, como formarmos esse novo público?
Você está há décadas nessa área. Como viver de Cultura e como fazer para continuar com a arte?
Arilton Assunção: É quase impossível. É sobreviver e não é vitimismo. Não é por falta de trabalho, mas é muito difícil. No interior é tudo muito costuradinho. Criam-se as escolas (de Arte), você paga e tem entregado o produto. Tanto que muitos grupos sobrevivem nas épocas de algumas apresentações. Surgiram as leis de incentivo à Cultura e parece que todos viraram artistas. Mas eram pessoas que nunca vi no teatro, que nunca estudaram em lugar nenhum. E pior. Não é um ator, bailarino ou músico. A pessoa já é diretora de um grupo artístico. Quem sobrevive de arte dá para contar nos dedos. Depois, tem pessoas que falam que é artista, embora não caiba a mim fazer esse julgamento. Num edital com a participação hipotética de 50 pessoas, apenas umas cinco delas sobrevivem de Arte. O restante tem seus trabalhos formais e se apresenta esporadicamente. Outros, porém, não participam de cursos gratuitos, não prestigiam os eventos musicais e ainda assim participam dos editais. Então, quem vive realmente de arte são os grandes artistas e grandes cantores.
Você vivenciou o racismo durante todos esses anos em que esteve e está envolvido com o teatro e a dança?
Arilton Assunção: Como toda criança preta, ainda mais no interior, sempre soube de minhas origens, mas não havia um diálogo em casa. Eu demorei a entender o que era racismo e preconceito. Somente quando eu tinha uns 15 ou 16 anos, já quando dançava, eu consegui entender o que era o racismo. Como naquela época não havia internet, eu pesquisava nos livros e via que quase não existiam bailarinos negros. Tinha uma foto de uma companhia americana e só. Quando se criou o Corpo de Baile de Salto, o Ismael Guiser (coreógrafo, bailarino, diretor e professor de dança argentino) me viu dançando e me deu um estágio na companhia dele. Eu fui para São Paulo e nessa hora eu entendi que a dança era racista, preconceituosa e elitista. E até hoje ela é assim, embora existam mais possibilidades agora.
Quais casos de racismo mais o marcaram durante sua carreira?
Arilton Assunção: Já fui dar aulas ou palestras em alguns lugares, como convidado em grandes congressos e, quando chego no hotel, questionam e até falam que os principais quartos estão lotados. Mas estão justamente porque uma das reservas estava em meu nome. É sempre uma confusão. Morei em Novo Hamburgo (RS), durante um tempo, trabalhando em um Centro de Tradições Gaúchas. Eu trabalhava num prédio em que, no piso inferior, havia o mais tradicional restaurante da cidade e eu almoçaria nele. Porém, os garçons não vinham me servir. Eu precisei parar de ir lá, porque se não passaria fome. Pedi para a pessoa que me contratou me fornecer o valor da refeição e fui comer num shopping que tinha em frente. E na estreia do balé, todos estavam lá, batendo aquela palma meio que sem querer. Uma falsidade.
Como você vê a realização de projetos sociais que são voltados para a arte como existem atualmente?
Arilton Assunção: A Ingrid, uma das professoras do Faces Ocultas, faz um trabalho social muito bacana com alunas do Santa Cruz. Ela as busca com o próprio carro, dá a aula e depois leva de volta, sem cobrar nada. Se não, elas não participam. Infelizmente muitos projetos sociais que existem não dão a mínima estrutura. Dão aula numa quadra. Mas como prender a atenção de uma criança numa quadra? E isso não é apenas em Salto. Depois chega o fim de ano falam que existem diversos projetos, mas em quais condições? Oferecer aula de música sem instrumento? Aula de dança com pessoas gritando em volta? Isso sem contar as crianças que chegam morrendo de fome ou vítimas de violência. Tivemos casos de uma menina que chegou toda machucada por ter apanhado. É nessas horas que falta apoio do Poder Público.