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Educação é o caminho para combater o racismo, diz o vice-presidente do Conselho da Igualdade Racial

O preconceito envolvendo o jogador Vinícius Júnior, o Vini Jr do Real Madrid, no mês de maio, foi o estopim para que a sociedade começasse a prestar atenção aos prejuízos provocados pelos casos de injúria racial e de racismo. Mas esse foi apenas um episódio em meio a tantos outros que sequer se tornam conhecidos. Para evitar que os casos continuem se sucedendo, o vice-presidente do Conselho Municipal da Igualdade Racial de Salto, Carlos Eduardo Ribeiro, defende que se invista mais na educação.

“Hoje falam que tudo é politicamente correto, que não se pode mais chamar de ‘negão’ ou ‘neguinho’. Antigamente, porém, também não podia. A diferença é que tudo era mais velado e não escancarado como é hoje. Então, precisamos tirar isso do nosso cotidiano, sobretudo junto aos menores, desde criança mesmo, ensinando o certo e o errado desde o princípio”, afirma. Para o vice-presidente, a escola tem um papel fundamental na formação das pessoas e na constituição das suas avaliações sobre o mundo.

Em entrevista ao PRIMEIRAFEIRA, o vice-presidente do Conselho também criticou o medo, a burocracia e a lentidão da justiça para fazer com que as denúncias sejam levadas à frente e lamentou a falta de ação na medida ideal do Poder Público, que participa do Conselho como se fosse obrigado e não por engajamento, e pediu que haja mais representantes negros na política que estejam engajados e decididos a lutar pela causa negra por conhecerem como ela se processa e a sentirem na própria pele.

Veja abaixo a entrevista na íntegra.

 

Os casos de injúria e de racismo chegaram ao limite com Vini Jr?

Carlos Eduardo Ribeiro: É difícil. Muito difícil. Vemos que falta empatia das pessoas. Em pleno 2023, ao invés de diminuírem os casos de racismo, eles estão crescendo. Vemos que falta conhecimento e engajamento pela causa racial. Não basta falar que não é racista, como vimos nesse caso do Vini Jr, mas também combater o racismo. Isso é o que mais falta atualmente.

 

A que se deve esse grande número de casos que estamos vivenciando no país e no mundo atualmente?

Carlos Eduardo Ribeiro: Politicamente falando, tivemos um governo passado que abriu brechas e tirou muitas pessoas do armário. Não que nos anteriores não tivesse gente assim, mas não havia com tanta incidência. Não houve a punição correta para os casos também. A punição hoje está mais rígida, mas antigamente não era assim. Pagava-se uma cesta básica ou prestava-se um serviço comunitário e estava tudo certo. Hoje não. É cadeia mesmo. Ainda assim, vemos um afrouxamento no cumprimento da lei. Quem tem poder aquisitivo para pagar as fianças, paga e continua sendo racista, porque a punição é branda. Essa pessoa não terá a devida instrução de como corrigir a sua postura. Ela vai se trancar no mundo dela e continuará sendo racista para sempre.

 

Casos como o do jogador Vinícius Júnior, o Vini Jr., que têm grande repercussão, influenciam positivamente nessa luta?

Carlos Eduardo Ribeiro: A exposição foi perfeita nesse caso. Com essa exposição, ocorreram as tratativas e devidas punições aos autores. Depois desse caso, as autoridades espanholas foram ver as câmeras de vigilância e conseguiram encontrar os responsáveis. E isso se reflete aqui no Brasil também. Temos uma gama de artistas que luta contra o racismo e que não teve as mesmas proporções de repercussão como a que a do jogador teve. Então, há o combate, há a instrução, porém, o Vini Jr está mais exposto para a mídia que todos esses outros e, para nós, foi excelente.

 

É possível medir quanto o racismo está presente na sociedade?

Carlos Eduardo Ribeiro: Bastante. No último mês, eu recebi três denúncias de racismo e uma de injúria religiosa que ocorreu dentro de uma empresa em que a pessoa foi mandada embora por ser de uma religião de matriz africana. Ainda é difícil combater esses casos. Muitas vezes, para quem pratica, pode achar que seja algo sem importância ou sem repercussão. Pode falar, por exemplo, do cabelo de uma pessoa negra como naturalidade, porém, quem escuta isso, se sente ofendido. Falar da cor é algo sem comparação em termos de humilhação, como falar que uma pessoa é gorda, entre outras. Antigamente poderiam alegar não saber sobre os crimes de racismo, hoje não. A informação está aí e o alcance é enorme.

 

Por que nem todos esses casos chegam ao conhecimento das autoridades policiais para as possíveis punições?

Carlos Eduardo Ribeiro: Muitas pessoas que sofrem se retraem para falar desses casos. Então precisamos trazer à tona sim. Não é mimimi, não é historinha. Tivemos três casos recentes em que a pessoa foi orientada a fazer o boletim de ocorrência, mas para isso já há uma burocracia. Depois, é preciso que ela leve o caso adiante e, possivelmente, volte a ficar frente a frente com quem a descriminou. A vítima acaba se sentindo coagida. Então a maioria decide não levar o caso à frente, achando que não vai dar em nada. Desiste mesmo. Medo, burocracia e a lentidão da justiça fazem com que essas denúncias não sejam levadas à frente. Isto leva a uma regressão. Se ela foi ofendida em um supermercado, ela decide simplesmente não voltar mais lá. Mas não é assim. Ela tem de entrar, tem de comprar, afinal ela está pagando pelo que comprou.

 

A criação de uma lei específica, semelhante à Lei Maria da Penha nos casos de violência contra mulheres, poderia aumentar as denúncias e fazer serem cumpridas as punições?

Carlos Eduardo Ribeiro: Nós prezamos pela educação e não pela punição. A punição tem de vir, mas, se vier pela educação, é melhor. Colocar a pessoa dentro de uma cela, fazer pagar cestas básicas ou obrigá-la a prestar um serviço comunitário não fará com que a pessoa deixe de ser racista, infelizmente.

 

Qual seria a melhor forma consolidar o combate ao preconceito?

Carlos Eduardo Ribeiro: Temos o letramento racial, que é estudar as práticas antirracistas, com falas, atitudes e ações. Isso tudo deve começar dentro das escolas, fazendo com que os gestores insiram isso no conteúdo aplicado. O letramento não é uma punição e sim um aprendizado. Ninguém nasce racista. No decorrer da vida a pessoa se torna racista, muito pelo convívio com pessoas mais antigas que traziam isto do seu cotidiano. Hoje falam que tudo é politicamente correto, que não se pode mais chamar de “negão” ou “neguinho”. Antigamente, porém, também não podia. A diferença é que tudo era mais velado e não escancarado como é hoje. Então, precisamos tirar isso do nosso cotidiano, sobretudo junto aos menores, desde criança mesmo, ensinando o certo e o errado desde o princípio.

 

Dentro dessa ideia de iniciar o combate ao racismo nas escolas, como fazer isso sendo que alguns dos casos estão ocorrendo justamente no ambiente escolar?

Carlos Eduardo Ribeiro: Primeiramente é preciso que os gestores e professores participem de atividades antirracistas. Precisamos trazer a religião de matriz africana para dentro das escolas. Temos uma lei federal, a de número 10.639, de 2003, que obriga o estudo da matriz africana e da cultura indígena, mas não é cumprida. Então temos de trazer para o dia a dia essas atividades, além de inserir coordenadores e intelectuais negros para dentro das escolas, o que hoje não existe. Essa lei precisa ser cumprida, primeiro entre os professores. Certamente, depois, ela se intensificará entre os alunos. NR: A Lei Federal 10.639 foi promulgada em 9 de janeiro de 2003 pelo presidente da época, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e estabelece a obrigatoriedade do ensino de “história e cultura afro-brasileira” dentro das disciplinas que já fazem parte das grades curriculares dos ensinos fundamental e médio. Também estabelece o dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra a ser lembrado e comemorado no calendário escolar.

 

Como é o trabalho do Conselho Municipal de Igualdade Racial?

Carlos Eduardo Ribeiro: Fazemos reuniões mensais divulgando o letramento racial. Queremos mudar o conceito de concentrar as atividades apenas em novembro e estamos promovendo algumas atividades mensais, como, por exemplo, o Café com Pretos, que acontece sempre no último domingo do mês no Museu de Salto. O conselho também atua através das denúncias, como, por exemplo, a de um caso que aconteceu em um colégio da cidade recentemente (o colégio é o do Ceunsp). Então nós abordamos, fazemos as devidas tratativas com os envolvidos e levamos o auxílio, seja ele de advogado, psicólogo ou o que for preciso. Também realizamos cursos para ensinar e divulgar as práticas antirracistas.

 

Qual é a participação do Poder Público no conselho?

Carlos Eduardo Ribeiro: O Poder Público precisa se engajar mais nessa causa antirracista. Hoje, no conselho, há o engajamento apenas da sociedade civil. Os representantes do Poder Público não comparecem às reuniões e quando vem o fazem como se fosse algo obrigatório para a sua atividade e não de engajamento.

 

Qual a importância da Casa da Memória Negra para luta em prol da causa racial em Salto atualmente?

Carlos Eduardo Ribeiro: A Casa da Memória Negra de Salto tem o histórico de famílias negras saltenses, mostrando o cotidiano na reprodução de uma moradia típica. E lá é onde fazemos o Café com Pretos, uma reunião de várias tribos, não apenas de pessoas negras. As pessoas expõem seu cotidiano, os casos de racismo que sofreram e promovemos debates e rodas de conversas. A Casa da Memória Negra surgiu num momento de muita fragilidade da comunidade negra em Salto. Hoje ela é como se fosse um quilombo na cidade. NR: Quilombos são espaços e as comunidades criadas por populações que se formaram a partir de situações de resistência territorial, social e cultural no Brasil, como as dos negros.

 

O fato de estar no Museu da Cidade ajuda na divulgação?

Carlos Eduardo Ribeiro: Sabemos que o museu tem uma história ligada à cultura italiana, mas a realização dos eventos na Casa da Memória Negra fez com que o número de visitantes ao museu crescesse. Apenas na primeira edição do Café com Pretos atingimos o mesmo número de visitantes ao museu ao longo de um mês. As pessoas não se interessam pelo museu, pela história. No ano retrasado, a Casa da Memória Negra passou por uma reforma e sairia de lá, sendo substituída por uma exposição sobre Mussolini, o que, para quem conheceu sua história, sabe que é um milhão de vezes melhor ter uma exposição como a Casa da Memória Negra. O marco da criação da Casa da Memória Negra serviu para trazer o público de volta ao museu, ao mesmo tempo que apresenta a cultura negra saltense. Há alguns burburinhos dando conta de que ela sairá de lá, mas nós do conselho vamos bater o pé para que ela fique, afinal o museu é para todos e ela tem a sua importância.

 

Outra importante comunidade negra da cidade é o Clube José do Patrocínio. Qual a importância dele para os negros e para a cidade?

Carlos Eduardo Ribeiro: Eu frequentei o clube por muitos anos quando era mais novo e posso garantir que ainda é uma referência para os clubes negros da região. A memória negra está lá e seria preciso um pouco mais de apreço pelo local. Quando estive à frente do clube, fiz várias reuniões com clubes da região e nossas referências são excelentes. Vinham ônibus e mais ônibus de fora para os bailes, havia concursos e os brancos também frequentavam, diferentemente do mito que existe até hoje. Gostaria muito que existisse alguém que tomasse o clube para si a fim de valorizar o clube e a cultura negra na nossa cidade.

 

Qual a importância da participação dos políticos negros no combate aos crimes de injúria?

Carlos Eduardo Ribeiro: Temos de ter as figuras negras na política para servir como referência. Mas essas figuras precisam ter uma boa índole, ter conhecimento das causas negras e ajudar a criar leis em favor dos negros. As pessoas negras votam em negros. Então precisamos colocar mais dos nossos para que possamos sentir que somos representados. Tivemos o ex-presidente do Estados Unidos Barack Obama, que foi uma referência aqui no Brasil. Então imagina se tivermos um presidente negro no futuro.

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