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Médico, liberado após dois anos de prisão por erro no processo, escreve livro para denunciar injustiça

Sete anos depois de ser acusado de mandar matar o próprio irmão no Paraná e de ficar preso por 25 meses (entre 2016 e 2018), o médico e advogado Manoel Marques, de Salto, conseguiu provar a sua inocência na justiça, obtendo uma vitória de 7 votos a 0 no seu julgamento. Nesta sexta-feira (11), ele lança o livro “A (In) Justiça do Brasil no Banco dos Réus”, relatando todo o caso, para denunciar o que chama de falhas graves do sistema judiciário nacional e evitar que novos casos aconteçam, além de pleitear indenização por danos.
O médico relata no texto, escrito pelo jornalista e blogueiro Nelson Lisboa, que foram cometidos erros desde o início da apuração do crime. De acordo com ele, o delegado da época se baseou em um depoimento de um genro do irmão, que o acusava, sem provas, de ser mandante do crime, para prendê-lo. A partir disso, ele só conseguiu provar a inocência quando a sua defesa recorreu ao Superior Tribunal Federal para que analisasse as provas.
Agora, o médico e advogado, que hoje, aos 71 anos, está aposentado, classifica o período de prisão como um retiro espiritual no qual pôde fazer diversas reflexões que o tornaram um homem melhor. Mesmo assim, ele quer mostrar as mazelas do sistema. “Hoje, em torno de 40% a 50% dos presos do sistema carcerário estão há mais tempo presos do que a pena que deveriam receber”. O médico quer mudar essa realidade com a publicação.
Antes do lançamento oficial da obra, marcada para sexta-feira (11), às 19h, no Salão Social do Ideal Lounge, em Salto, o médico e advogado esteve no PRIMEIRAFEIRA, acompanhado do jornalista, para falar a respeito do livro e de como ele se sente depois de tudo o que aconteceu com ele quando ainda tinha 65 anos. Ele demonstrou obstinação em reparar o erro cometido pela Justiça com o pagamento de uma indenização que cobra do Estado.
Veja a íntegra da entrevista abaixo.

Como surgiu o interesse de contar essa história através de livro?
Nelson Lisboa:
Eu já conhecia o Manoel (Marques) há algum tempo. Inclusive, lembro de quando ele foi preso em Salto. Um dia ele veio até mim falando da ideia de escrever o livro, disse que tinha anotações feitas durante o período de prisão. Eu comecei ler a história e me surpreendi. Então, elaborei um roteiro, que contaria a história da família dele, que veio de Portugal para o Brasil, até o nascimento do neto dele. E ele aceitou. O livro termina com o texto de um jornalista de Maringá perguntando quem pediria desculpas ao Manoel. No livro, relato a busca dele por uma indenização, já que foi vítima de uma série de erros e de injustiças. Mas o livro tem também inúmeras curiosidades interessantes.
Manoel Marques: O mais simples seria não fazer nada. Mas essa covardia eu não levarei como culpa ao cemitério. Hoje, em torno de 40% a 50% dos presos do sistema carcerário estão há mais tempo presos do que a pena que deveriam receber. Quando você ouve falar sobre revoltas em presídio, com presos portando armas de fogo, o que acontece? Nada. Como chegou a arma na mão deles não interessa. Nas celas, como a que presenciei em Maringá, onde deveria ter 10 presos, tinham 40. O detento tem direito ao trabalho, mas não tem vaga, ou seja, de cada dez, apenas um ou dois trabalham. E quem não trabalha não tem redução de pena.

O que exatamente vai ser o foco do livro nesse relato?
Nelson Lisboa:
O livro surgiu durante os dois anos que ele ficou no retiro espiritual, a mando da Justiça de Maringá, no Paraná, onde o senhor Manoel foi acusado de ser o mandante da morte do irmão dele. Relatamos a história da família para mostrar os erros da Justiça, dos investigadores, do Ministério Público, desembargadores do Tribunal de Justiça do Paraná e do juiz de Maringá. Foram erros desde o início da investigação, que culminaram com a prisão após uma acusação injusta do genro do irmão do Manoel, que foi preso e, para não condenar a filha da vítima, ele disse que o crime teria ocorrido a mando do Manoel. E a Justiça veio errando de lá para cá, fazendo com que o Manoel ficasse preso por dois anos, quando então conseguiu fazer chegar o processo ao Superior Tribunal Federal, o STF, para que delegassem a decisão para o Tribunal de Justiça do Paraná. No livro relato que o Manoel foi preso por uma “cagada” da Polícia de Maringá e foi libertado por outra “cagada” da Justiça. Digo isso porque na hora que foram julgar o recurso de Habeas Corpus, por ordem do STF, um dos desembargadores teve disenteria e não pode julgar. Um terceiro desembargador foi chamado e, em 20 minutos, lendo o processo, falou para os outros que não era para o Manoel estar preso. Foi então que o desembargador que acompanhava o caso desde o início adiou o julgamento, trocou o voto e deu o Habeas Corpus. Ele ainda veio para Salto, com tornozeleira eletrônica e teve de esperar o julgamento, no qual, de forma incomum no Brasil, foi absolvido por sete votos a zero, inclusive com o pedido do Ministério Público por erros sucessivos da Justiça.

Quais foram esses absurdos cometidos pela justiça, tanto de Salto quanto a justiça paranaense?
Nelson Lisboa:
Primeiro que, assim que a ordem de prisão foi expedida, a polícia chegou na casa dele de forma truculenta e armada. Outro absurdo relatado no livro foi da Promotoria Pública de Salto, que, ao ter encontrado uma arma na casa do senhor Manoel, comprada nos anos 1970 e devidamente registrada, abriu um processo dizendo que ele não poderia ter a arma, porque não estaria registrada na Polícia Federal, sendo que na época, bastava o registro na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Esse processo foi rejeitado pelo juiz de Salto, o Ministério Público recorreu e viu ser rejeitado também pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, mas o Ministério público voltou a recorrer, alegando que o Manoel era um ser humano que não deveria viver em sociedade. Relatamos erro do investigador, do promotor e do juiz que acatou, tudo baseado em documentos do próprio processo. Além disso, todas as falhas do processo foram referenciadas pelas afirmações do advogado, onde relacionamos os erros. O maior absurdo é que o Estado errou e, ao ter sido absolvido, o senhor Manoel foi requerer da Justiça as indenizações devidas. Porém, uma das desembargadoras que julga esse processo, disse que o Estado não tem culpa dos erros de quem os representa. E pior, disse que ele quer se enriquecer às custas do Estado do Paraná. Então, o objetivo desse livro foi mostrar que o Estado errou e que a Justiça errou.

O senhor tem preocupação com o julgamento, sobre o que poderão fazer, apesar das provas que coloca no livro?
Nelson Lisboa:
Não tenho medo, porque, tecnicamente, essa é minha maior reportagem em 26 anos de jornalismo. Além disso, quero garantir que outros seres humanos, que não têm as mesmas condições financeiras do senhor Manoel, consigam sobreviver a esses erros que a Justiça comete. Se o senhor Manoel fosse um cidadão humilde, carente e sem condições de lutar contra o sistema, provavelmente estaria preso até hoje, ou pior, poderia estar morto.

O senhor, seu Manoel, se sentiu humilhado e de mãos atadas por ter sido preso sem ter uma condenação?
Manoel Marques:
Se tem uma coisa que Justiça faz com quem está preso é isso. Não basta estar preso, precisa ser humilhado. Sabe quantos advogados já foram presos e ficaram naquele “chiqueirinho” em Salto? Um. Eu. Eu não poderia ter ficado preso num lugar daqueles. O delegado à época, que estava de plantão na casa dele, sequer se dignou a vir à delegacia. Os advogados que me representavam ligaram para ele e falaram sobre o caso. Sabe o que o delegado respondeu? “Problema dele”. Eu coloquei duas pérolas no livro que mostram um pouco sobre como funciona a Justiça. O delegado de Maringá, durante o processo, ao pedir a prisão, escreveu que havia a necessidade da prisão, uma vez que se tratava de um indivíduo de alto poder aquisitivo. Isso está no processo. São letras dele. O que vai na contramão do que diz a procuradora no processo no qual peço indenização. Ela escreveu que o Estado não tem responsabilidade pelas ilegalidades de seus agentes públicos, mesmo quando ocorrem prisões injustas e infundadas. Esta procuradora ainda escreve que eu queria enriquecer às custas do Estado. O delegado pediu minha prisão por eu ser rico, enquanto ela disse que eu queria ficar rico às custas do Estado.

Como foi o processo no qual alegavam que o senhor tinha um porte de arma indevido?
Manoel Marques:
Paralelo ao processo da minha condenação, aqui em Salto havia um processo pela arma que eu tinha em casa, arma essa que já teria decidido a guerra na Ucrânia, uma Beretinha 22. O delegado recebeu a arma, fez o boletim de ocorrência e entregou para uma promotora de Salto. E ela tinha um indivíduo para auxiliá-la, que eu o classifico como psicopata, o qual deu o despacho para o juiz autorizar o processo. O “psicopata” ficou nervosinho, recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo, mas os desembargadores novamente ressaltaram a pena administrativa. Esse indivíduo deve ter ficado espumando de raiva e recorreu, gastando dinheiro e tempo. O processo foi ao Superior Tribunal de Justiça, onde os juízes o receberam e, com o poder que têm, fecharam o caso. Ainda assim, esse “psicopata’ escreveu que eu deveria ser preso por não ter condições de viver em sociedade.

Como o senhor foi absolvido desse julgamento?
Manoel Marques:
O promotor que ficou no caso quase até o finalzinho sempre dizia não para os meus julgamentos e o juiz sempre dizia não, não e não. Quando marcaram o júri e eu contratei o doutor Juliano Bretas, ele alegou que não teria tempo para fazer o júri e pediu para ser substituído. Veio então outro promotor, pediu adiamento para ler o processo e, quando remarcou, esse novo promotor pediu a minha absolvição.

Nesse tempo que o senhor chama de “retiro espiritual”, quais situações acabou vivenciando?
Manoel Marques:
Por ser médico, eles precisaram de mim várias vezes. Eu atendi, inclusive o coronel-comandante de Maringá que sofreu uma queda jogando bola. É um episódio até engraçado, porque os carcereiros saíram correndo para chamar o preso para atender o coronel. Eles até chamaram a ambulância, mas para não perder tempo, me chamaram. Quando a ambulância chegou, colocaram o coronel na maca e eu entrei com ele e fiquei até a chegada do médico. Enquanto isso, ouvia um burburinho do lado de fora. No dia seguinte, descobri que o major estava questionando o que eu estava fazendo dentro da ambulância. Alguém falou a situação para ele e, no dia seguinte, o major veio aonde eu estava e me pediu desculpas. O governo do Paraná mandou um major ir de Curitiba a Maringá para que ele pudesse me agradecer.

O que esses 25 meses de prisão do senhor representarão em sua história de vida daqui para frente?
Manoel Marques:
Um tempo atrás, um amigo meu falou para chamar o período em que cumpri pena de retiro espiritual e me questionou: “Vamos conversar com Deus, ele retrocede o tempo e, ao invés de eu ser preso, um filho teu é levado embora?”. Todo ser humano passa por um momento difícil na vida e o meu foi esse. Sempre existem coisas mais graves. Para mim, foi esse o peso que tive de carregar nesta vida.

O senhor acredita que o livro terá algum poder de mudança nas injustiças cometidas?
Manoel Marques:
O doutor Juliano Bretas (advogado que defendeu Manoel) leu e falou que acha que vai mudar alguma coisa. Se mudar uma vírgula, eu já fico feliz. A grande maioria dos que estão presos, não tem como se defender e fica jogada nas cadeias e presídios.

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