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Eu gosto de relembrar.

Essas lembranças me remetem a bons tempos vividos, sem nada de importante acontecido em qualquer dia que seja, mas creio mesmo que essa ‘desimportância’ é o que torna tudo mais belo ao ser recordado.

Trabalhei no escritório do Palácio dos Calçados. A amiga desde a infância, Gisele Crucello – tínhamos à época 16 anos de idade – foi quem me convidou a trabalhar lá, já que ela sairia, para outro trabalho.

Conheci meus patrões Jorge, Julinho e Paulinho Marangone. Quem estaria sempre na sala ao lado da minha, era Julinho, uma pessoa boníssima e que me explicou, depois da Gisele, como seria o trabalho de secretária a ser feito. Jorge viajava entre as lojas em diferentes cidades e Paulinho não me recordo muito o que fazia, mas pouco aparecia na loja de Salto. Julinho já partiu desta vida e isso há muitos anos. Seu falecimento precoce, abalou uma cidade inteira, ele era uma pessoa conhecida e querida.

O que ele nunca soube, pois não tive a chance de dizer, se é que diria um dia, é o encantamento que me causava entrar em sua sala e ele estar fazendo cálculos e não olhar para a máquina ao digitar os números. Eu ficava absolutamente vidrada naquela mão, tocando as teclas e os olhos pousados no papel, folha, planilha que estivesse a sua frente. Como podia? Como conseguia? E passou a ser uma meta mental a ser alcançada. Aquelas que determinamos um dia e lembramos muito vez em quando. Lembrei, por exemplo, a cada vez que ia ao banco Itaú, anos depois de não mais trabalhar no escritório e ver o amigo Sidnei, contando dinheiro com uma velocidade arrasadora e calculando da mesma maneira que nunca me esqueci, fazia o Julinho Marangone.

Lembrei de uma tarde, resquício das tardes passadas na biblioteca municipal, nas quais não tinha mais trabalho a fazer, retirei um livro, coloquei-o sobre a mesa, mas estava incomodada por ser horário de expediente, mesmo sabendo que não precisava fazer mais nada. Resolvi o pôr na primeira gaveta e ler de dentro dela. Julinho saia da sala dele, eu fechava a gaveta, passava eu abria e prosseguia lendo, ele voltava, eu fechava a gaveta novamente. Fiz isso diversas vezes no prazo de poucos minutos, até que, não resistindo àquele abre e fecha, Julinho enfim perguntou:

-Rosimar, por que você abre e fecha esta gaveta?

E eu, enrubescida, tive que contar que estava lendo um livro, e o coloquei sobre a mesa e o lembrei de que não havia mais trabalho a ser feito por aquela tarde.

Ele riu, um pouco nervoso, pois não sabia mesmo qual seria minha resposta e foi para sua sala, enfim sossegado sobre o que poderia ser aquele abre e fecha de gaveta. Não sei se ele era um leitor, mas acredito que poderia ser sim, posso dizer que passou a sorrir um pouco mais depois deste episódio, sério que sempre foi.

-Julinho, daí de onde você se encontra, saiba: Hoje eu digito números na calculadora ou teclado, sem olhar para as máquinas.

Tem importância isso?

Não tem, mas acho tão bonito e gostaria tanto de ter dito isto a ele um dia. Está dito aqui.

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