“Vivemos em um local complicado. Então, se, de cem crianças, eu conseguir salvar trinta, tenho certeza de que teremos um mundo muito melhor. Essas crianças não estarão na Fundação Casa, não cometerão crimes que os farão ser presos no futuro, como vemos lá atualmente. A maioria das crianças que vive lá não tem estrutura familiar e acaba procurando conforto nas ruas, onde acha apenas o que não presta”, afirma Selma Maria de Oliveira, uma deficiente física indignada com o abandono dos que mais precisam.
Para não ficar apenas na crítica, há dois anos, ela arregaçou as mangas junto com uma amiga e vem reunindo uma porção de pessoas dispostas a ajudar e que fazem doações, trabalham na preparação da estrutura e auxiliam na elaboração e no funcionamento do projeto Mutuca, que ganhou esse nome em homenagem a um morador que fazia ações sociais na região como ela vem fazendo. “Eu fico feliz quando vejo jovens estudando, trabalhando e podendo andar de cabeça erguida”, diz.
Em entrevista ao PRIMEIRAFEIRA nesta semana, Selma Maria de Oliveira contou histórias marcantes que presenciou ao longo do tempo de existência do projeto e aproveitou para criticar o Poder Público, que, segundo ela, é ausente e esqueceu o Jardim Marília, que poderia ser, na visão dela, um dos melhores bairros de Salto, como acontece com outros que estão dotados de infraestrutura e de atenção do Poder Público, como o Nações e o Santa Cruz.
Vejam a íntegra da entrevista abaixo.
Como começou a iniciativa de se criar o projeto Mutuca?
Selma Maria de Oliveira: O projeto começou há dois anos, durante a pandemia, com a intenção de oferecer uma sopa, de forma solidária e voluntária, para os moradores do Jardim Marília. Lembro muito bem que era uma segunda-feira e que fazia muito frio quando tive a ideia e uma amiga me ajudou. Essa amiga foi em uma loja. Uma pessoa escutou a história e fez uma doação de R$ 20 para comprarmos alguns ingredientes. Pela dificuldade de locomoção, os vizinhos foram espalhando a ação e em 40 minutos não tinha mais sopa. Hoje em dia as pessoas vão até a porta de casa perguntar se vou servir as refeições. Era uma ação solitária, sem nome, que foi continuando semana a semana. Faz dois anos que estamos nessa ação e hoje não me vejo sem oferecer essas refeições.
E a proposta se expandiu apenas pelo espírito solidário?
Selma Maria de Oliveira: Eu contei da ação para o Carlinhos (Carlos Eduardo Ribeiro, vice-presidente do Conselho Municipal de Igualdade Racial e representante da Central Única das Favelas, a Cufa em Salto) e em pouco tempo ele me doou umas 20 cestas básicas. Eu olhava para as cestas e pensei que, se apenas as doasse, talvez não tivesse o impacto necessário. Então essa minha amiga sugeriu oferecer, além das sopas, um café da manhã, no sábado, com aqueles alimentos. E assim fizemos. Novamente o Carlinhos me incentivou e falou que eu deveria divulgar a ação. Logo após a divulgação, apareceu um grupo de pessoas do time de futebol do Jardim Marília e da associação dos moradores do bairro, que se dispuseram a ajudar a oferecer o café da manhã todas as semanas.
O projeto tem um nome diferente, não é? De onde surgiu a ideia de se adotar esse nome?
Selma Maria de Oliveira: Mutuca surgiu do apelido de um amigo que faleceu e que fazia algumas ações sociais. Um dos filhos dele me procurou e pediu para colocar esse nome no projeto.
O que a senhora oferece como conteúdo nessas refeições?
Selma Maria de Oliveira: Faço de 15 a 20 quilos de arroz por semana. Ofereço também feijão, macarronada, farofa. É uma comida simples e de coração. São mais de 130 famílias atendidas e não apenas no Jardim Marília. Já vieram famílias do Jardim Santa Cruz aqui buscar almoço. Temos as refeições às segundas-feiras, na qual ofereço sopa, e um almoço que antes era oferecido aos sábados, mas agora estamos fazendo durante a semana. Essa mudança ocorreu porque meu foco é oferecer essa alimentação às crianças. Hoje, o almoço é oferecido na quarta ou na quinta-feira e aos sábados temos o café da manhã.
Para atender ao projeto, onde as refeições são preparadas e como elas são servidas e onde?
Selma Maria de Oliveira: Na minha casa mesmo. Tínhamos um espaço que ninguém dava nada e nele consegui colocar equipamentos que ganhei para a cozinha, como um fogão industrial e armários. Todos estão sendo feitos sob medida e tudo será instalado em breve. Tudo isso é fruto de doações.
O que representa para a senhora poder oferecer alimentação a tantas pessoas dessa forma?
Selma Maria de Oliveira: Vivemos em um local complicado. Então, se, de cem crianças, eu conseguir salvar trinta, tenho certeza de que teremos um mundo muito melhor. Essas crianças não estarão na Fundação Casa, não cometerão crimes que os farão ser presos no futuro, como vemos lá atualmente. A maioria das crianças que vive lá não tem estrutura familiar e acaba procurando conforto nas ruas, onde acha apenas o que não presta. Eu fico feliz quando vejo jovens estudando, trabalhando e podendo andar de cabeça erguida.
Na avaliação da senhora, a fome ainda atinge muitas pessoas?
Selma Maria de Oliveira: A fome agora está muito pior que durante a pandemia. Na pandemia o pessoal se ajudava. Já hoje, nem tanto. Vemos pessoas que têm casa, mas não tem alimentos para pôr na mesa. Na medida do possível, ajudamos, oferecendo cestas ou doando alguns alimentos. Antes, os pais levavam alimentos para os filhos, hoje são os filhos, essas crianças que ajudamos, que levam os alimentos para os pais. Dias atrás um menino comeu três pães, suspirou e falou: “Deus abençoe”. Isso é indescritível. Eu já ofereci para eles chocolate quente, algo que é bem legal e as crianças gostam. Mas as crianças da nossa região preferem o café com leite, porque é o dia a dia deles. Alguns nunca haviam tomado o chocolate quente. Dias atrás oferecemos pão com patê de frango e alguns não quiseram, possivelmente porque nunca tinham comido. Agora, pão com salsicha, que é mais comum, eles comem muito bem.
A senhora acha que hoje as pessoas estão mais individualistas?
Selma Maria de Oliveira: Não acho. É que hoje temos muitos grupos que realizam ações sociais. Vemos nos finais de ano e em datas festivas, praticamente todos os bairros realizando ações para a população. Acontece que, por conta de algumas pessoas de má-fé, outras acabam deixando de ajudar quem realmente precisa. Mas, a ajuda ao próximo deve partir de cada um. Durante a pandemia as pessoas se ajudavam mais. Hoje, ninguém quer mais ajudar o outro. E, infelizmente, ainda há muitas pessoas oportunistas.
A comunidade do entorno da senhora é engajada não somente em seu projeto, mas em outros para desenvolver a região?
Selma Maria de Oliveira: Há alguma ajuda, mas não é tudo aquilo. Tivemos a tentativa da formação de uma associação de moradores, mas que nem sei que fim deu, e temos o time do bairro, que até nos ajudou no começo, mas hoje tem suas prioridades.
A senhora acha que a região, por suas dificuldades, é vista com preconceito pela sociedade saltense?
Selma Maria de Oliveira: Muito. Principalmente pelo Poder Público. O Poder Público é muito ausente. Ele fala amém para o que lhe convém. O que não convém, fica de lado. Nenhum prefeito deu a devida atenção ao Jardim Marília. Temos bairros, como o Jardim das Nações, que tem tudo próximo. Quem mora no Santa Cruz não precisa vir até o centro para fazer o que for preciso. Nossa região deu uma melhorada nos últimos anos, mas ainda assim é complicado. O Poder Público tem culpa, mas os moradores também. A população adora juntar lixo. Você limpa de manhã e à tarde está cheio de lixo novamente. Falta cidadania e bons costumes para que valorizem aquilo que eles têm. Fizeram uma horta comunitária no bairro, mas que fica de posse de duas pessoas e não da comunidade. O Jardim Marília deveria ser um dos melhores bairros da cidade.
Como é para a senhora realizar essa ação em uma das regiões menos favorecidas da cidade?
Selma Maria de Oliveira: Me sinto privilegiada em poder ajudar o próximo. É gratificante ver uma criança tomar o café da manhã, comendo pães, bolos, canjicas. Tudo o que elas não têm em casa. Nessa semana soube que algumas roupas que arrecadamos foram, através da igreja que frequento, destinadas aos moradores do nordeste brasileiro (atingidos pelas fortes chuvas). O projeto Mutuca está aqui, mas alcance muitas pessoas longe também.
De onde a senhora consegue obter todas essas doações?
Selma Maria de Oliveira: A maioria das doações vem de fora. As vezes chegam doações que nem sei quem enviou. O importante é que nunca faltaram alimentos. Algumas pessoas doam hoje, outras doam amanhã e assim vai. Sempre tem um filho de Deus que aparece para ajudar. Essa obra, que está sendo feita em minha cozinha, eu tentei por muito tempo fazer. Quando estava desistindo, Deus colocou essa pessoa na minha frente, que bancou material e mão de obra. Hoje recebemos os alimentos doados, mas ainda estamos tendo algumas dificuldades com as proteínas, sejam elas carne de porco, de frango, de boi ou mesmo a salsicha comum.
Nesses dois anos do projeto, qual história mais marcou a senhora nessa empreitada de ajudar as pessoas?
Selma Maria de Oliveira: Foram tantas. Recentemente recebemos uma doação de pasta de dente, escovas e sabonetes e, ao distribuir para as crianças, uma delas saiu toda sorridente e agradecendo. Uma vez fiz pães caseiros e dei para um grupo de crianças, mas falei para eles que não tinha mais e pedi para que não falassem para outras crianças. De repente, um monte de crianças veio até minha porta. Uma outra vez uma das crianças participou de um jantar que fizemos junto à comunidade religiosa e perguntou se poderia levar um pouco do alimento para os irmãos que estavam em casa.
Diante de tudo o que a senhora já fez, o que espera alcançar com o projeto Mutuca?
Selma Maria de Oliveira: Minha intenção era oferecer refeições todos os dias, mas eu não tenho estrutura para isso. Com ajuda de voluntários, quero oferecer aulas de crochê e culinária para as crianças. Também recebi alguns voluntários que estariam dispostos a dar aulas de reforço escolar e de língua inglesa. Estou apenas esperando organizar o espaço que tenho para iniciar. Eu gostaria que as pessoas se conscientizassem da situação e tivessem mais interação umas com as outras, sobretudo com as crianças, entendendo as necessidades delas. As crianças são nosso futuro e devemos formar cidadãos de bem. Uma sociedade com crianças educadas fará com que tenhamos um mundo melhor para se viver.