Professor do Conservatório Municipal de Salto, Gilmar de Campos afirma que a música pode ser acessível a todos e deseja mais incentivo dos governantes nacionais
A música começou na vida do professor Gilmar de Campos como uma brincadeira. Mas, a brincadeira o transformou num dos grandes músicos de Salto atualmente. Ele conta que a irmã tinha um disco de Vivaldi e que o aparelho que rodava esse disco estava com a rotação alterada. “Ninguém acreditava, mas eu tirei a música nesse tom mais rápido, somente escutando.
Nesse momento foi que minha família percebeu que eu poderia ter um futuro na música”. E foi o que aconteceu.
O episódio aconteceu há mais de 30 anos. Depois ele começou a estudar no Conservatório Municipal Maestro Henrique Castellari. Em seguida se graduou pela Unicamp e ainda teve uma passagem de mais de duas décadas pela Orquestra Sinfônica de Sorocaba. Recentemente, já como professor do Conservatório onde começou, ele se juntou ao Quarteto Tristão Júnior, um grupo musical que homenageia o maestro ituano e que surgiu por iniciativa de um saltense, o então deputado estadual Archimedes Lammoglia, e passou a se apresentar com o grupo.
Nesta entrevista exclusiva ao PRIMEIRAFEIRA, Gilmar conta a sua trajetória, desde os primeiros passos na música até transformar o que para muitos poderia ser apenas uma brincadeira em uma profissão de verdade. Mais do que formar músicos, Gilmar sonha um dia em ver a música, em especial a clássica, difundida em todo o Brasil.
Confira a entrevista completa abaixo.
Como o senhor começou na música e como tomou a decisão de adotar os instrumentos em que se especializou?
Gilmar de Campos: Eu sempre fui uma criança muito introspectiva, que não brincava muito na rua. Minha mãe conta que uma das minhas primeiras manifestações artísticas era pegar os moldes de costura que ela utilizava para fazer formas. Meu primeiro contato com a música foi desenhando instrumentos musicais. Um certo dia, um desses vendedores ambulantes, algo que antigamente era muito comum na frente das escolas, apareceu com uma flauta doce. Só que, além de vender, ele tocava o instrumento. Quando eu ouvi o som, achei muito bacana aquele brinquedo. Foi um tempo insistindo para minha mãe comprar e, quando comprou, tive a sorte de ele ter vindo com alguns diagramas ensinando a tocar algumas músicas simples e conhecidas, como o “Parabéns pra você”. Nisso eu comecei a tocar as músicas que tinham naquele caderninho e depois comecei a tocar as músicas que ouvia no rádio.
E quando o senhor e sua família decidiram que era hora de tornar a música algo além de uma diversão?
Gilmar de Campos: Minha irmã tinha um disco de Vivaldi e o aparelho que rodava esse disco estava com a rotação alterada. Ninguém acreditava, mas eu tirei a música nesse tom mais rápido, somente escutando. Nesse momento foi que minha família percebeu que eu poderia ter um futuro na música. Algum conhecido sugeriu à minha mãe me matricular no Conservatório Municipal Maestro Henrique Castellari. Era uma fase muito boa do Conservatório, com muitos investimentos, entre eles a contratação de um professor que tocava flauta doce e estava sempre envolvido nos meios culturais da época, o senhor Rubem Marcos Rocha Júnior. E logo que entrei, ele me acolheu e em três anos de curso passei a tocar muita coisa, aprendi a ler partituras e daí pra frente não parei.
O que motivou o senhor a se juntar ao Quarteto Tristão Júnior e retomar as apresentações do grupo?
Gilmar de Campos: O Quarteto Tristão Júnior é formado por profissionais que conviveram em outras épocas e que têm experiências com serestas etc. Esse grupo ficou parado por uma série de motivos, entre eles, problemas de saúde envolvendo alguns de seus participantes. Não sei se por fatores políticos ou não, as administrações municipais também foram tendo outras prioridades e com isso acabamos não sendo mais chamados para eventos públicos. Foram uns sete anos parados. Até que a Célia Trettel teve a ideia de elaborar um projeto através da Lei Paulo Gustavo, que foi aprovado, e com isso tivemos dois concertos que marcaram nosso retorno. Após sete anos vimos um outro tipo de público, outras pessoas nos acompanhando e acho que ganhamos alguns novos seguidores.
Qual a origem do Quarteto Tristão Júnior e como o senhor começou a participar dele?
Gilmar de Campos: Esse grupo existe desde 1989 por uma determinação da Secretaria de Cultura de Itu em cumprimento a uma Lei do deputado estadual Archimedes Lammoglia, que visava manter viva a memória desse compositor ituano. Então foi preciso fazer o grupo para manter viva a música dele como um patrimônio imaterial. Mesmo sendo músicas do século XX, elas ficaram por muito tempo sem serem executadas e poucas pessoas as conheciam. A Célia Trettel, que é nossa líder e fazia parte de uma comissão na Prefeitura de Itu, começou a procurar pessoas que tivessem o perfil para fazer parte do grupo. Eu era estudante do curso de violão, cuja professora era a própria Célia e esse curso era ministrado no Conservatório Municipal Maestro Henrique Castellari na época. Mas, além disso, eu tocava clarinete, instrumento bastante adequado para serestas. A Célia então me chamou, junto de outros alunos e, junto do também professor Antônio Francisco Stoppa, e montou a primeira formação, com cinco integrantes. O senhor Toninho foi o contrabaixista do quarteto e dava aulas de solfejo, que é o aprendizado dos símbolos musicais no Conservatório, onde eu estudava até então. Ele costumava “caçar” os alunos nos corredores para ensinar essa metodologia e foi um grande incentivador meu, tanto que ele sugeriu à Célia para que eu integrasse o quarteto. Começamos a tocar juntos em 1990 e fazíamos serestas nas casas de pessoas que conviveram com o Tristão e viveram aquela época dele. Em um dos anos, fomos até num caminhão caracterizado, o que me recordo até hoje como uma experiência muito bacana. Tínhamos apenas três músicas do Tristão naquela época e depois, com o tempo, com pesquisas aprofundadas, começamos a aumentar o repertório. Ele começou como um quinteto, mas por uma série de fatores, acabamos nos tornando um quarteto, com músicos especialistas em flauta, clarinete, violão e contrabaixo. E vamos continuar muito tempo ainda.
Para o senhor, como é ver novas pessoas acompanhando as serestas, muitas delas talvez pela primeira vez?
Gilmar de Campos: É algo muito gratificante. Sabemos o poder da música sobre as pessoas e que dificilmente alguém fica indiferente quando começa a escutar. Ainda mais num tempo caótico que vivemos atualmente, acho que todos precisam de um tempo para a música, para proporcionar um certo acolhimento. Ver novas pessoas e contribuir para o bem-estar de alguém, mesmo que de forma sutil, é algo que deixa qualquer músico feliz.
A música é um tipo de estudo acessível para a maioria das pessoas hoje em dia na opinião do senhor?
Gilmar de Campos: Vai depender do instrumento e do que a pessoa quer. Eu comecei com uma flauta doce, que é um instrumento muito simples e considerado por alguns como um brinquedo por conta da sua simplicidade. Ela nada mais é que um apito com furos dos quais é possível extrair uma música. Por exemplo, uma pessoa quer ser baterista, mas será que ela sabe batucar alguma coisa. Pode começar com pandeiro ou um cajón (ou carrom, na adaptação linguística portuguesa) e depois migrar para a bateria. Mas a música em geral tem desde os instrumentos utilizados pelas melhores orquestras até os instrumentos mais simples, em versões de outras procedências, que permite um primeiro contato e caminhar por alguns anos. Meu primeiro oboé era um instrumento de madeira, que estava rachado, colado e que já havia sido usado. Não estava nas melhores condições, mas me permitiu iniciar na música.
Como é para o senhor ensinar novos alunos a tocar, sobretudo, a música clássica?
Gilmar de Campos: Quando o aluno chega até nós ele tem aquela visão do instrumento sendo tocado, mas existe todo um processo para ser percorrido. E não é um processo imediato. A música contém uma parte cerebral e uma parte física. No meu caso, o violoncelo é um instrumento com um braço imenso que exige do músico se sentar numa cadeira e o obriga a acertar a nota musical para não desafinar. Para esse resultado há todo um treinamento. Outro exemplo são os instrumentos de sopro. As pessoas geralmente levam um certo tempo até ter a consciência onde cada músculo da região maxilar deve estar para conseguir um determinado som, mas nunca é tarde para começar.
É possível seguir carreira na música atualmente?
Gilmar de Campos: São vários fatores envolvidos. A música é uma profissão, porém, nem sempre encontramos meios tão fáceis para atuar, sobretudo em nossa região. Isso faz com que alguns músicos busquem outros caminhos. Mas, permite que você possa atuar em eventos, que faça shows, que se apresente nas ruas, que crie um grupo próprio. É uma longa estrada. Hoje ainda temos a questão dos projetos culturais com incentivos governamentais, mas são situações pontuais. Infelizmente temos poucas bandas e orquestras nas cidades, muito diferente de como acontece em outros países. Sem nenhuma questão ideológica envolvida, mas a Venezuela, um país pouco maior que alguns Estados brasileiros apenas, possui trezentas e tantas orquestras. Vai muito da cultura de cada país. Há uma série de burocracias e de questionamentos sobre a manutenção de orquestras ou grupos musicais por parte dos municípios, ainda mais numa geração para a qual temos várias opções de música do mundo todo disponível a qualquer instante. Mas, como músicos, esperamos sempre ter melhores condições.
Algum aluno do senhor já se destacou a ponto de figurar em orquestras mundo a fora?
Gilmar de Campos: Eu tenho a felicidade de contar isso. Um aluno que começou no oboé comigo, em Sorocaba, hoje está na Sinfônica de Berlim, na Alemanha. Eu, como dizemos, “amassei o barro” com ele. Depois, ele foi para São Paulo e de lá para a Europa. E hoje ele está junto dos melhores profissionais da atualidade.
A que se deve o expressivo aumento no número de interessados nos cursos do Conservatório Municipal?
Gilmar de Campos: O aluno do Conservatório terá acesso não apenas ao instrumento ou à disciplina que escolher. Ele vai ter acesso a um complexo cultural de artes plásticas. Isto o tornará alguém mais sensível à arte. Mesmo que não se torne um profissional, certamente será uma pessoa que dará mais importância à manifestação artística e isso refletirá em sua família, filhos e daí em diante.
Por que o público hoje acaba preferindo outras atrações culturais, como shows de comédia, a uma orquestra?
Gilmar de Campos: Tem uma frase que diz o seguinte: “Gostar é conhecer. Eu acredito que conseguíssemos penetrar mais no dia a dia da população. Talvez pudéssemos ter um público maior, mas não temos. Infelizmente essa é a nossa realidade. Eu me lembro de uma apresentação da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a qual eu não pude acompanhar, e que em dado momento começaram a tocar uma obra de Villa-Lobos. Um senhor que estava logo em minha frente levantou e saiu irritado. Talvez ele achasse que fosse um outro tipo de música, mais próxima do que ele estava acostumado a ouvir, que tocassem. É uma situação difícil para nós, músicos, porque as pessoas agem assim.