Cada um deve ter sua própria biblioteca favorita, suas próprias obras clássicas, seus próprios exemplos do que acha ser indispensável à humanidade, afinal de contas – como disse Antônio Candido num texto belíssimo, “O direito à literatura” – não posso achar que aquilo que é indispensável a mim é dispensável ao outro.
“As correções” é um romance que acho indispensável, ao menos a quem espera ler um livro que, mais que meramente bem escrito, é também perturbador, irônico, divertido, cáustico. Seu autor, Jonathan Frazer, ofereceu um panorama dos mais ricos – e, novamente, perturbadores, irônicos, cáusticos e, acrescento, sarcásticos – sobre a vida do norte-americano médio de meados do século XX.
Um dos poderes inegáveis da literatura é esse de dar a conhecer outro mundo. Tanto é que um romance histórico, “Vermelho Brasil”, por exemplo – tem a capacidade de nos falar de uma outra época com minúcias capazes de nos transmitir toda a atmosfera de um período. E o livro de Frazer nos faz mergulhar no cotidiano de uma típica família do meio-oeste norte-americano (região estigmatizada por seu provincianismo). Um casal de idosos e três filhos de meia idade: é o que basta à habilidade narrativa de Frazer, que exige, é bem verdade, muita atenção do leitor, pois quebra a linearidade dos eventos e retoma-os, sem aviso prévio, cinquenta páginas adiante.
A literatura, quando escapa da armadilha de ser mera demonstração do exótico, como aquela que valoriza excessivamente o meio – geralmente peculiar, geralmente afastado da “civilização” –, ou preocupada demais com a bandeira política, sem muita atenção à realização estética, pode, ainda que fale de um país nunca conhecido pelo leitor, revelar os dramas que pertencem, mais do que só a uma língua ou cultura, à própria experiência humana. É impossível ler sobre Alfred, um velho parksoniano, e não associar seus dramas e os de sua família (sobretudo de sua esposa Enid, que protagoniza uma cena divertidíssima com um médico a bordo de um transatlântico) àqueles que todos nós estamos sujeitos quando convivemos com pessoas idosas em casa, por mais que algumas das imagens evocadas por “As correções” dificilmente fossem admitidas como fazendo parte de nós.
É difícil justificar a literatura, dizer para que serve uma romance (por isso não é fácil dar aula de literatura: deve haver um acordo prévio de que a leitura e discussão de uma obra ou um poema valem em si mesmos, sem finalidades imediatamente “úteis”); da mesma forma, no entanto, é difícil que a vida seja a mesma depois da leitura de uma história que foi marcante, assim como é muito improvável que a sensibilidade para com a vida seja a mesma entre quem gasta a vida lendo romances ou quem não passa da leitura de jornais e gasta 99% de seu tempo livre deslizando centenas de telas com o dedo. Não diria que a leitura de “As correções” faz bem. Acho, na verdade, que nos deixa mais perturbados. Mas é uma perturbação que todos deveríamos experimentar.