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A escola que perdeu o encanto e a falácia das metodologias ativas.

A escola, na minha infância, era um espaço majestoso e encantador,dotado de: um vasto jardim onde habitavam peixes, aves, lagomorfos e algumas espécies arbóreas endêmicas de fustes avantajados; tanque de areia; piscina; parquinho; teatro; oficina de artes; laboratório de química; quadra poliesportiva; área para empinar pipa; pista de atletismo; campo de futebol e uma linda horta, que o professor de ciências zelava com muito esmero e a tinha como um grandelaboratório; que ninguém arrojava adentrar sem sua prévia autorização.

A escola era um território sagrado onde sorriamos, brincávamos, dançávamos, desenhávamos, experimentávamos,compúnhamos músicas e poemas, discutíamos sobre política e religião, brigávamos, organizávamos eventos, participávamos das olímpiadas, criávamos obras de arte e peças teatrais, construíamos as primeiras amizades e romances, ouvíamos conselhos e histórias de vida dos professores;tidos como deuses.

Carregávamos um orgulho indubitável em cantar o hino nacional, com a mão direita sobre o peito, antes de entrar para a sala de aula. O uso do uniforme era sinônimo de máxima honraria. A mochila,com um peso absurdo, dava guarida às obras clássicas das ciências, além do dicionário e a novíssima gramática. Minha mãe encadernava as obras científicas com papel plástico xadrez e fazia questão de olhar, todo santo dia, o caderno. Fui uma criança privilegiada, por ter em casa a coleção completa dos grandes pensadores e a enciclopédia Barsa, de grande valia pedagógica para a época.

O que está acontecendo com as escolas de hoje?

Os alunos cada dia menos interessados; que comparecem por obrigação legal na escola e não movidos pela magia do aprendizado e do intercambio sociocultural. Desde a Grécia Antiga, a Paideiae a criação das escolas eramvistas como prioridade política e o único meio de minimizar as desigualdades sociais e tornar o homem um cidadão virtuoso, justo,crítico, ético, feliz eaptopara governar a “polis” e viver sob o prisma da Eudaimonia.

O filósofo ateniense Platão, em 387 a.C,criou a primeira instituição formal de educação, denominada“academia”. Nessa instituição ensinava-se tudo a todos e a principal técnica “pedagógica” era a maiêutica, herdada da dialética socrática. A maiêutica está associada à técnica de “parir o conhecimento”; construir uma ideia ebuscar a própria “verdade” pelo cogito, a partir de indagações, experiências e reflexões.

A pedagogia contemporânea, todavia, vem criando e utilizando-se de certos jargões de gênese corporativista, corriqueiramente utilizados no mundo do empreendedorismo, graças ao pedantesco e obscurantismo dos “pseudopedagogos”. Esses almejam convencer a sociedade, que as escolas precisam serem vistas e gerenciadas como uma empresa de bens de produção. Nessa ótica mercadológica, paramétrica e tecnocrata; o aluno passa a ser um cliente, portador somente de direitos, que deve ser bajulado e favorecido em todas as etapas do processo educativo. O docente vai deixando de ter autonomia sobre o conteúdo e os métodos de ensino.A nobre função de: tutor; fomentador do criticismo; dinamizador do raciocínio dialético e intermediador da construção do conhecimento vem cedendo espaçoao papel de um mero operário de uma máquina desgovernada,ancorada no sistema “fordista”.

Atualmente os docentes, outrora denominados de intelectuais orgânicos pela sociologia gramsciana, são acicatados,vigiados, punidos e coagidos a: alcançar metas utópicas, preparar os discentes para as “avaliações” externas de cunho político;utilizar-se de aulas elaboradas pela inteligência artificial e o uso desmedido das plataformas digitais.

Desde o movimento escolanovistae socioconstrutivista busca-se intermitentemente atribuir àmetodologia clássica de ensino, como a grande e única responsável pelo fracasso da educação básica pública e odesencantamento dos alunos pela escola. É mais fácile cômodoachacar os gestores e docentes, porsuas metodologias, ao invés de:refutar as políticas públicas educacionais; avaliar a capacidade intelectual e a expertise dos entes, que ocupam cargos estratégicos, da educação e reformular as leis ediretrizes (LDB e ECA), que norteiam o atual modelo de educação.

Particularmente, cultivo umaexacerbada fobiaao uso da locução “metodologia ativa”, visto que não é conivente com o sentido denotativo, científico da palavra “metodologia”. Todo discente de pedagogia, ou outra ciência, teve como componente curricular obrigatório a disciplina de metodologia da pesquisa científica. A leitura da obra de Eva Lakatos e Marina Marconi, intitulada de: “Fundamentos da metodologia científica”, ainda é obrigatória em muitas universidades. As autoras definem metodologia como: “O estudo sistemático e racional dos métodos e técnicas empregadas em um determinado processo de pesquisa e investigação científica”. O real objetivo da metodologia é mapear, identificar e analisar os vários métodos e suas: limitações; características e implicações, em diversas aplicabilidades.

Os “pseudopedagogos”, por exacerbada insipiência e indubitável arrogância, andam fazendo uma grande confusão no conceito e utilização das palavras: técnica; método; metodologia e estratégia pedagógica. O uso da expressão “metodologias ativas” nos evidencia que os métodos e técnicas tradicionais, de ensino-aprendizagem colocavam sempre os discentes como entes passivos e sem autonomia, liberdade para: participarem; criarem; dialogarem; refutarem teorias; indagarem e serem protagonistas na construção dos saberes. Sabemos que isso não é verdade, visto que essa metodologia clássica fomentou o surgimento de muitos discentes autodidatas, artistas, polímatas e críticos, que foram laureados com o Nobel. Sendo assim, não podemos aceitar a pressuposição da existência de metodologias “ativas”, visto que nunca existiram as metodologias “passivas”. A educação, mesmo nos moldes autocráticos e disciplinador, sempre foi e continuará sendo uma prática humana, em que se estabelece uma correspondência biunívoca entre discente e professor e a inseparabilidade entre corpo e mente.

Ultimamente ouvimos muito o termo “world café”, que os “pedagogos inovadores” consideram como uma modalidade da “metodologia ativa”. Trata-se de: “um processo criativo baseado em diálogos entre indivíduos, numa elaboração coletiva e colaborativa para responder questões de grande relevância, sob determinado assunto ou problema de pesquisa. Os participantes são divididos em grupos para conversar sobre um determinado tema previamente escolhido. As conversas acontecem em rodadas com duração determinada e, ao final de cada uma, os grupos são redefinidos de maneira que os participantes vão se miscigenando ao conversar com diferentes pessoas e aos poucos vão construindo explicações, respostas e soluções a partir de reflexões”.

A geração “nutella” da educação enquadra essa prática, como vanguardista e uma estratégia revolucionária. Na verdade, essa prática pedagógica nada mais é que a maiêutica,citada anteriormente. Também é uma técnica utilizada desde meados do século XX pelas empresas, a partir da concepção da escola humanística da administração, em que o brainstorming se torna estratégia de engajamento dos colaboradores na gestão democrática, em busca de soluções aos problemas da empresa.

Outra técnica da “metodologia ativa”, que muito se fala, é sobre a aula “invertida”. Essa técnica, prática de ensino, tem como premissa a inversão da lógica habitual; onde o docente estipula uma temática, objeto de estudo, e os alunos começam a pesquisar, sintetizar as ideias e elaborar uma aula expositiva para a sala, sendo intermediados e orientados pelo docente em todo o processo. Na verdade, está técnica é milenar (aproximadamente 450 a.C) e foi muito usufruída pelos filósofos gregos, nas chamadas ágoras, onde se discutia sobre política, arte, filosofia, matemática e estratégias de guerra com os aprendizes (discípulos) e cidadãos; que opinavam e apresentavam sugestões e soluções para os problemas das “pólis, a partir de uma prévia investigação filosófica. É notório que os pseudopedagogos contemporâneos apresentam uma grande lascívia em “reinventar a roda”.

A tecnologia da informação e a digitalização vem alterando profundamente o processo de ensino-aprendizagem e a relação interpessoal. Muito se fala de gamificação, como um método de aprendizagem ativa, tanto na educação acadêmica quanto na gestão da aprendizagem corporativa. Trata-se de incorporar ao ensino o uso de programas, jogos digitais, simuladores virtuais e outros softwares (aplicativos), no sentido de estimular o engajamento dos discentes; fomentar o ensino lúdico e o pensamento analítico. Na educação básica pública temos pouca aplicabilidade e pífios resultados práticos com a gamificação no processo de aprendizagem. Isso se deve a vários motivos: falta de recursos tecnológicos nas unidades escolares; instiga o uso dos celulares sem fins pedagógicos; deficiência na formação dos docentespara a gamificação; uso inadequado de plataformas digitais e pouca integraçãoentre os componentes curriculares.

A gamificação vem gerando um campo próspero para o nascimento e multiplicação de empresas privadas, que maximizam seus lucros e diversificam o portfólio, com a venda dos “pacotes tecnológicos” educacionais ao governo. A gamificação e o uso de plataformas digitais não geram melhorias globais e significativas na aprendizagem dos alunos. Muitos países, tidos como líderes no ranking do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), tais como: Suíça, Espanha e Austrália, abandonaram esse tipo de “metodologia ativa” nas escolas de educação básica.

A partir da Idade Moderna a escola passou a ser uma ferramenta sociopolítica de aprimoramento de técnicas e habilidades necessárias ao aprimoramento dos meios de produção e maximização da lucratividade da propriedade privada. A serviço dos interesses políticos e econômicos da classe dominante, as escolas do proletariado passaram a se preocuparem em aprimorar a infraestrutura da sociedade industrial e abastecer o mercado com mão-de-obra em excesso, obediente e tecnicista. Os fecundos aforismos nietzschianos reforçam a concepção de que a educação contemporânea gera uma mediocrização humana e afasta o ser de sua natureza e espírito crítico. A educação é um exercício de descoberta ontológica, em que se prepara o aluno para a vida plena, pensamento profundo, espírito “livre”,quebra de paradigmas e, o mais importante, a ímpar oportunidade de reencontrar o sentido da vida e o encantamento pela escola.

A educação “positivista” é marcada pela “produção” de um indivíduo técnico, gélido, egocêntrico, racionalista, especialista, normativo e telespectador do real. Karl Marx já alertava que a especialização do sistema educacional, evidenciado hoje pelos chamados “itinerários formativos”, levará o homem à idiotice e alienação. As escolas, em sua grande maioria, têm a função “mascarar” a realidade e treinar a razão para uma funçãoespecífica, ao invés de criar um ambiente próspero à emergência da arte e ciência, em que o processo de aprendizagem seja encantador e o jardineiro, professor, mais valorizado que o jardim.

As escolas vivem em um profundo e intenso conflito ideológico. De um lado, lhe cabe a função de: promove e difundir a ideologia neoliberal; preparar os alunos para as avaliações externas, para o vestibular e instruí-los para o mercado de trabalho.Por outro lado, seu maior erro, está em exercer o papel da família, que vem se volatilizando. A escola, principalmente a pública, está deixando de ser referência de ensino e pesquisa, para virarem organizações formais de educação moral e cívica, assistencialismo social e espaço físico de guarida e proteção, onde os “responsáveis” deixam seus entes, enquanto trabalham.

O que mais me atemoriza é a recente estandardização dos métodos de ensino, o uso indiscriminado das plataformas digitais e como se não bastasse surgem as “metodologias ativas”, como as grandes “salvadoras” da pátria, na soluçãopara o fracasso e desencantamento escolar.Os pseudoeducadores brasileiros encontraram, recentemente, um grande “guru” da pedagogia; trata-se do professor estadunidense Doug Lemov. Sua obra: “Aula nota 10”, é um “guia” que contém 49 técnicas de ensino, ou melhor táticas de treinamento, a fim de tornar os docentes eficientes na criação do que chama de “cultura de aprendizagem”.

Essa taxonomiacartesiana de técnicas de ensino e treinamento de docente, para o uso eficiente das” metodologias ativas”, lhe rendeu notoriedade social e bilhões de dólares; a ponto dessa obra, graças ao rebanho de acéfalos, se tornarbestseller. Todasconcepções e saberes do referido autor foram construídas no empirismo (observação da prática de docentes) e não no rigor científico, como se exige a ciência da pedagogia. A realidade e contexto sociocultural e econômico em que essas “técnicas” foram aplicadas e analisadas em escolas privadas dos Estados Unidos, de forma superficial, são extremamente díspares com o cenário das escolas públicas brasileiras.Lemov, assim como a cúpula estratégica da educação básica pública, tem um pífio “referencial teórico” e uma sórdida formação acadêmica em filosofia e pedagogia. Suas propostas incitam a padronização da didática, pragmatização dos saberes e surgem como uma cortina de fumaça, no intuito de ocultar a incompetência do Estado na área da educação.Os últimos trabalhos científicos publicados de pedagogia, oriundos de institutos renomados de pesquisas na área da educação, não citam essa obra e a comunidade científica a repudia veementemente.

A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, no entanto, vem sendo entusiasta dessas técnicase promoveLemov como o “Copérnico” da educação contemporânea. A atual proposta pedagógica da educação básica está imersa nessa patifaria e falácia das “metodologias ativas”. Acreditar e investir nessa nefasta ideologia antipedagógica é o mesmo que fabricar remédio para um cadáver. Lemov é mais um charlatão da pedagogia contemporânea que deve ser combatido, como os sofistas foram. O fracasso da educação básica pública está em suaestrutura (diretrizes políticas,ideológicas e legais) e não nas metodologias de ensino e muito menos na gestão escolar. A escola vai perdendo seu encanto à medida que desumaniza o ser, castra a criatividade, impede a liberdade, adestra a razão e cala o filósofo que habita no âmago de todos os alunos.

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