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Interligadas

Brasil, a república do latifúndio, e a utopia da sustentabilidade rural.

O Brasil está entre os países mais desiguais do mundo, tantoem distribuição de renda como na redistribuição fundiária. O cerne dessa desigualdade perpassa pelo processo histórico colonial e da implantação do sistema de produção agrícola, conhecido como plantation.

As externalidades sociais, econômicas e ambientais,oriundas dos modelos“desenvolvimentistas” do espaço rural brasileiro, tem uma raiz histórica-política e que parece estar longe de ser solucionada. Foi somente no iluminismo que a terra passou a ser considerada um ativo de grande valia social, tida como um bem comum, onde se deveria explorá-la de forma racional e prudente, a fim de que todos pudessem gozar dos frutos da terra. A Revolução Francesa, influenciada pelos ideais multifacetados de Rousseau, é tida por muitos como o primeiro e maior movimento sociopolítico da história; munido do intuito de coibir a perpetuação dos latifúndios, garantir a isonomia, reprimir o absolutismo, dissolver a aristocracia agrícola e fomentar um desenvolvimento rural socialmente justo.

Quando os portugueses, usurpadores, chegaram ao solo brasileiro iniciou-se a espoliação da terra,a perda de autonomia dos nativos, aculturação dos nativos pela evangelização e o processo de ocupação violenta dos territórios. Concomitantemente ao declínio do período de sesmarias; a baixa oferta de escravos no mercado e a ineficiência na gestão das capitanias hereditárias, iniciou-se a comercialização das terras “devolutas” e o processo exacerbado de privatizações e grilagem do espaço rural. Aliado a essa transição, do domínio público ao privado,instigou-se a tomada ilegal de terras por posseiros, famílias tradicionais e influentes políticos; a partir da “independência” do Brasil.

O poder privado dos grandes latifundiários permanece hipertrofiado, com quase toda a vida social e política orbitando sua autoridade. Foucault, filósofo contemporâneo, foi impar e cirúrgico ao estudar o âmago das relações de poderes entre os atores sociais, aparelhos ideológicos contemporâneos. Em seu livro, “Microfísica do Poder”, faz uma análise dialética e ímpar sobre as diversas formas de poderes existentes;corroborando para a desmistificação de que o poder não é e não pode ser entendido como sendo dotado de significado negativo e repressivo.  O poder, principalmente o político,é uma força que produz efeitos, externalidades em todas as estruturas sociais e econômicas.

O poder manifesta–se nas formas dispares e diversas, e determina:a dinâmica do contratualismo; estabelece a lógica do tráfico de influência; decide quem irá viver (chamado biopoder); fomenta a criação de organizações panópticas estatais; engendra estratégias para ocultar a verdade do dominado e reprimi qualquer movimento em prol da reforma agrária. No Brasil, o único governo que se dedicou com afinco à criação de um projeto político estruturado de reforma agrária, ancorado em uma reforma constitucional, foi João Goulart. Esse importante projeto político não só foi destituído do apoio da maioria do poder legislativo, que era e continua sendo pelego pelos grandes fazendeiros, mas despertou a ira da burguesia e acabou sendo considerado o grande estopim para o golpe militar.

A máquina pública sempre se inclinou diante dos interessesdos “coronéis” (padrinhos de políticos), hoje nomeados de “empreendedores” das commodities agrícolas. Seria um grande lapso e injustiça, no discorrer do presente artigo, se abster de citar a relevância da magnífica obra clássica do, jurista e sociólogo, Victor Leal Nunes, intitulada: “Coronelismo, Enxada e Voto “. O autor, munido de perspicácia e grau de imprescindibilidade, analisou em profundidade as relações, entre os poderes privado e público, que estruturou a política da República Velha. Sem recorrer às bibliografias estrangeiras estereotipadas e ao raciocínio reducionista, associou o intricado fenômeno do coronelismo à estrutura agrária do Brasil, à influência dos latifundiários na esfera pública e as fraudes eleitorais.

O clientelismo, mandonismo, conchavismo, coronelismo, positivismo, neoliberalismo e os mais diversos “ismos” perduram no cenário político brasileiro e ameaçam a sustentabilidade contemporânea; fundada em um evidente“mutualismo obrigatório” entre o poderpúblico e o coronelismo. O critério de dependência segue uma lógica fetichizada e nefasta. O poder público depende do “coronel” para criar e manter a funcionalidade do “curral eleitoral”; hoje nomeado de milícia. Não obstante, o “coronel” depende do poder público para manter seu prestígio na elite agrária, ter maior competitividade no setor que atua, voz ativa na mídia de massa e liderança no mundo do agronegócio. A versão moderna do coronelismo é o principal sustentáculo da políticabrasileira e grande responsável pela perpetuação das desigualdades sociais, deterioração da democracia, externalidades ambientais no campo, manipulações eleitorais, manutenção dos latifúndios, conflitos territoriais violentos e fortalecimento das oligarquias.

No espaçorural as disparidades e desigualdades são proeminentes e trazeminúmeros impactos ao estado democrático de direito do país. A concentração deterras no Brasil é absurda e deveria ser tratada como questão prioritária na política pública; todavia a mídia de massa e as instituições de ensino resistem em abordar e debater sobre essa temática. De acordo com o INCRA e Censos do IBGE, cerca de 0,3% dos imóveis rurais ocupam 25% de toda a terra agrícola do Brasil. 45% da área rural está na mão de menos de 1% das propriedades. As estatísticas ainda revelam: uma redução significativa da agricultura familiar, que é responsável por produzir cerca de 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros; ocupação maior das terras indígenas; aumento das especulações das terras brasileiras por estrangeiros;aumento do êxodorural; os avanços das commoditiesagrícolas em hotspot de biodiversidade; aumento dos impactos ambientais gerados pela monocultura; diminuição no IDH em áreas dominadas pelos grandes latifúndios e , por fim, o aumento da violência rural, dinamizada por disputas de terras.

Faz-se necessário compreender que é uma grande hipocrisia acreditarmos noavanço e aprimoramento de uma agricultura, pautada nos pilaresdo desenvolvimento sustentável, sem repensar sobre a real situação fundiáriado Brasil e as ações e planos políticos de reforma agrária. A sustentabilidade, no espaçorural, depende profundamente de uma política democráticade desapropriação dos latifúndios e da luta perene de um povo pelo extermínio do coronelismo. Precisamos não só de homenssequiosos para alimentar o mundo de forma sustentável, mas de entes críticos e politizados; que sejam capazes de se articulareme mobilizarem em prol dos seus direitos naturais,como acesso à terra e vida digna,prescritos na constituição brasileira.

Rodrigo Legrazie é graduado em filosofia, matemática, engenharia agronômica, geografia e pedagogia. Mestre em Administração. Atualmente é professor, pesquisador, consultor de agronegócio, ambientalista e escritor. Autor do livro: “Os Desafios da Sustentabilidade Rural”, publicado pela editora Livronovo (2015).

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