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Como a Inteligência Artificial pode ser aliada na educação e como evitar que ela seja vilã

Para o professor Luiz Henrique Scalise Júnior, que ensina literatura e que é um entusiasta do assunto, é inevitável conviver com a novidade, mas é preciso tê-la como aliada

 

Quem ouve o professor Luiz Henrique Scalise Júnior, que ensina literatura, falar de Inteligência Artificial, tem a impressão de que a transformação que a tecnologia vem causando em todas as áreas de atividade é um grande avanço que não pode mais esperar para se desenvolver, nem para ser aplicado e que deve ser ampliado.

De fato, não é à toa o entusiasmo dele, dado o nível de aprimoramento a que chegou a mais conhecida de todas as Inteligências Artificiais, o Chat GPT. “Estamos buscando maneiras de coabitar nesse processo, porque extingui-lo é impossível. O que temos de fazer é assimilar e saber de que forma devemos trabalhar para que não seja danoso ao aluno”.

Em entrevista ao PRIMEIRAFEIRA, o professor disse que adotou a estratégia de tratar o Chat GPT e todas as tecnologias que vieram na mesma linha como aliadas e não tentar reverter os processos. Ele também explica que muitos entendimentos a respeito estão errados e que as pessoas precisam olhar o desenvolvimento como um incentivo para a educação e para outros campos de atividade.

A inteligência artificial é um campo de estudo que desenvolve sistemas e algoritmos capazes de realizar tarefas que normalmente exigiriam inteligência humana. As aplicações da Inteligência Artificial são diversas, desde a automatização de processos industriais até a criação de assistentes virtuais para atendimento ao cliente, mas é um processo que impõe riscos.

O professor fala de como o Chat GPT, sigla de Generative Pre-Trained Transformer, se desenvolveu até agora e o que se pode esperar daqui para frente, de como ele concebeu a tecnologia e como a transmite para os seus alunos, além de explicar como melhor utilizar os conceitos na vida prática dentro e fora da escola.

 

Como tem sido para o senhor aliar o ensino com as novas tecnologias, sobretudo com o Chat GPT?

Luiz Henrique Scalice Júnior: O Chat GPT ainda é algo muito novo, mas que impacta na percepção da educação e nos obriga a buscar novos recursos. Uma das principais questões que tem abalado a tranquilidade dos professores é que o Chat GPT substitui alguns processos de aprendizagem. A elaboração técnica de alguns processos de aprendizagem, seja uma redação ou uma pesquisa na qual o aluno precisa elaborar algum conceito, pode ser feita pela ferramenta sem a intervenção humana. Desta forma, estamos buscando maneiras de coabitar nesse processo, porque extingui-lo é impossível. Na verdade, reverter qualquer processo tecnológico é impossível. O que temos de fazer é assimilar esse processo e saber de que forma devemos trabalhar para que não seja danoso ao aluno.

 

Então a educação vai precisar trabalhar em conjunto e aceitando a realidade tecnológica atual?

Luiz Henrique Scalice Júnior: Na verdade, nós já fazemos isso. Antigamente era comum fazer pesquisas de informações que eram muito difíceis de se acessar. Hoje, não existe mais cobrar de um aluno fazer pesquisa. É um trabalho de quinze segundos. Atualmente a pesquisa é diferente. Não se pede mais para pesquisar sobre um assunto e sim fazer um trabalho específico com os dados que irá obter. O Chat GPT vai ocupar um outro espaço e as operações com padrões textuais vão ser cada vez menos interessantes para o aluno. No caso de uma dissertação, por exemplo, o Chat GPT tem a percepção do que é uma dissertação, organização coletiva sobre determinado assunto e é capaz de fazer isso de maneira muito simples. A questão é que precisaremos ensinar nossos alunos que eles precisarão ser curadores desse novo conhecimento. Eles terão de validar as informações, dizer se o conhecimento está dentro de um bom desenvolvimento, entre outras situações. É um novo caminho que teremos de percorrer.

 

Até que ponto os professores poderão ter controle para saber se as atividades foram feitas ou não pelos alunos?

Luiz Henrique Scalice Júnior: Essa sensação de controle não existe. O professor que está ali, no dia a dia, vivenciando o conhecimento do aluno, pode se surpreender com o desenvolvimento do aluno ou achar que ele está se desenvolvendo pouco. No caso de uma dissertação a ser feita em casa, quando você pede para um aluno e ele traz com um processo super elaborado, vai ser suspeito. Um aluno que faz um bom texto, quando faz um texto ruim, também é estranho. Mas, quem garante que não teve ajuda dos pais, que não fez vendo um documentário? A questão não é o Chat GPT. A internet está há muito tempo fornecendo informações e trazendo algum desconforto para a educação. Não temos como dizer se o Chat GPT irá interferir na relação aluno-professor. Tudo vai depender do tipo de educação que estamos esperando. Você quer que o aluno pesquise e grave as informações? Isso o Google te entrega. Não existe nada que se possa perguntar ao aluno que não esteja a seu acesso através do celular. A educação está sendo forçada a mudar de processo. Na minha época eu era avaliado pelo meu nível de conhecimento. Hoje em dia, a pergunta é: O que você faz com esse repertório? De que forma você pode utilizá-lo? Ter um grande conhecimento e, aliado a isso, saber usar as ferramentas, torna o aluno um destaque. A ideia é fomentar no aluno não só conhecimento, mas ferramentas que ele possa manipular.

 

O Chat GPT pode se tornar um aliado à educação?

Luiz Henrique Scalice Júnior: Na verdade, deve. Nesse sentido é que estamos conscientizando os professores. Como queremos trabalhar com o Chat GPT? Com curadoria. O aluno terá de ter um nível de conhecimento suficiente para saber se a ferramenta está fazendo certo ou errado. Eu pedi para meus alunos pegarem informação no Chat GPT sobre um livro chamado “Angústia”, de Graciliano Ramos, e eles teriam de fazer algumas intervenções dentro das informações que eles levantaram na ferramenta. Mas, para isso, precisariam ter lido o livro, porque deveriam dizer se o Chat GPT estava certo ou errado. E a ferramenta erra muito ainda. Através do Chat GPT podemos trabalhar as premissas do que é fake e do que é verdadeiro e trabalhar paradigmas textuais e de conhecimento ao longo do processo também.

 

O quanto essa velocidade de acesso e quantidade de informações interfere no desenvolvimento educacional?

Luiz Henrique Scalice Júnior: Antes os professores pediam para os alunos lerem textos e trazerem as informações para um debate. O Chat GPT faz isso hoje, colocando os pontos principais de uma temática em questão de segundos. O processo do passado era efetivo ou não fazíamos mais rápido porque não tinha como? Fazer lento e fazer rapidamente uma tarefa muda a percepção de conhecimento sobre aquele objeto? Não!

 

O que é o Chat GPT e como ele funciona?

Luiz Henrique Scalice Júnior: O Chat GPT é uma tecnologia que vem sendo desenvolvida há mais de dez anos, só que no ano passado teve uma evolução absurda. Ela faz um uso muito parecido com o que os teclados virtuais fazem, nos quais você escreve uma palavra e ele faz uma sugestão da próxima palavra que poderia ser usada. A diferença é que o Chat GPT faz isso com um nível de complexidade muito alto. Ele é capaz de deduzir o que está sendo pedido com muita eficiência. Estamos hoje com a versão 4.0 e as versões anteriores não destoavam das ferramentas que os teclados de celular fazem, porém, em sua última versão e com o nível de alimentação feito para que a plataforma tivesse resultado, houve um desenvolvimento grande demais num curto espaço de tempo. Hoje a tecnologia é capaz de executar operações textuais seguindo padrões conhecidos por todos. Pode-se pedir para o Chat GPT fazer uma carta convidando os amigos para um churrasco, basta dizer a data, local e outras informações básicas e até mesmo o tom da carta, para que ele então gere a resposta. Um exemplo clássico desse processo é que os livros de contos na Amazon tiveram um aumento de mais de duzentos por cento de produção. Isso se deve ao fato de que muitos entenderam o uso da ferramenta e começaram a gerar textos. Se pedir uma história sobre uma garota que foi até a lua e voltou, o Chat GPT entende todos os padrões e irá gerar uma relação com isso, podendo criar um jeito mágico, de acordo com as informações. Ele vai gerar informações de acordo com o que já existe.

 

Essa inteligência artificial ainda ficará mais apurada?

Luiz Henrique Scalice Júnior: O Chat GPT tem chamado mais a atenção pelo que poderá fazer no futuro do que necessariamente do que poderá fazer agora. A ferramenta, porém, não está concluída e obrigou os criadores a suspender a operação da sua última versão, porque se espantaram com a evolução. Agora não são mais os desenvolvedores que fazem os processos evolutivos. A própria ferramenta está se desenvolvendo. O próprio criador mostrou-se muito assustado e não sabe até onde essa evolução vai chegar. Talvez seja a ponto de substituir a mão de obra em algumas áreas. Algumas profissões poderão deixar de existir por haver uma ferramenta que pode compreender linguagem textual humana. Se você pegar uma pessoa que trabalha numa função muito burocrática, cuja atividade seja gerar informação dentro de um processo simples, esse serviço poderá ser substituído em pouco tempo.

 

Foi esse desenvolvimento descontrolado que levou alguns países a suspenderem as operações da ferramenta?

Luiz Henrique Scalice Júnior: Na verdade, não houve uma suspensão exatamente. Existem projetos de lei para poder impedir o desenvolvimento da tecnologia. A Itália foi um desses países que vetou a utilização da ferramenta. Há algumas semanas houve até a notícia de que alguns magnatas da tecnologia se juntaram e fizeram um manifesto para impedir o desenvolvimento dessa tecnologia. Porém, trata-se mais de uma questão econômica do que social. Quando a OpenAI (empresa criadora da ferramenta) publicou o Chat GPT 3.5, não se acreditava que já tínhamos uma ferramenta que pudesse fazer coisas tão avançadas. Quando foram acessar e viram o nível de desenvolvimento, grandes big-techs perderam bilhões em suas operações, como foi o caso do Google, que perdeu U$$ 100 bilhões em mercado, porque não tinha uma ferramenta no mesmo nível. A OpenAI era, até então, uma empresa muito pequena, que conseguiu desenvolver uma ferramenta com tamanho nível de sofisticação que acabou pegando muitas pessoas de calças curtas, a ponto de a Microsoft ter feito uma injeção de U$$ 10 bilhões nessa start-up para poder obter um pouco da tecnologia em seu buscador de internet (Bing). Se me perguntar se essa interrupção é por uma questão humanística, eu creio que não. O ponto é que alguém correu muito e as grandes empresas precisaram de um tempo para alcançar essa tecnologia e evitar perder mais valor de mercado. A verdade é que não se esperava esse desenvolvimento no período de cinco anos. Isto quer dizer que a ferramenta hoje tem cinco anos de vantagem sobre o nosso momento.

 

Há risco de que a tecnologia saia do controle?

Luiz Henrique Scalice Júnior: Se analisarmos friamente, não. O Chat GPT só fala aquilo que queremos ouvir. Não existe como sair do controle, pois uma ferramenta gerada com um processo de intervenção humana tem diretrizes, as quais a ferramenta não poderá ir contra. Se pedir um texto racista ou homofóbico, o Chat GPT não irá gerar alegando que é contra a diretriz. Ele não responde a nada que não seja permitido fazer. Se alguém conseguisse fazer com que o Chat GPT saísse do controle, o que poderíamos ter é a criação de vírus de computadores ou interferências em sistemas tecnológicos, entretanto, não se vê isso como um potencial risco num primeiro momento pelo que se tem hoje.

 

Dá para apontar pontos negativos no Chat GPT?

Luiz Henrique Scalice Júnior: Qualquer ferramenta tem o lado positivo e o lado negativo. A chave de fenda, se eu usar para apertar um parafuso, vai resolver o problema, mas ela pode ser usada como uma arma também. A ferramenta digital é a mesma coisa. Você pode fazer um aplicativo com a ferramenta, basta explicar o que quer. Qual o dano desse processo? Posso fazer um vírus.

 

A Lei de Proteção de Dados no Brasil dá algum tipo de segurança em relação ao Chat GPT?

Luiz Henrique Scalice Júnior: A lei de proteção de dados do Brasil é recente e muito avançada, chamada de Marco Civil da Internet. Ela tem a falha que todas as grandes legislações do mundo têm, que é a necessidade de ser atualizada constantemente. Não se imaginava que ela necessitaria de uma atualização tão rapidamente e hoje não existe premissa na legislação sobre o Chat GPT. Como vamos lidar com o fato de o Chat GPT copiar um texto já existente de um artista? Se pedir para o Chat GPT fazer uma canção, ele pode pegar parâmetros de grandes artistas e fazer algo muito parecido. Isso implica em direitos autorais? É uma discussão. Outro exemplo: Pode se publicar num jornal um texto escrito pelo Chat GPT? A Lei não diz nada sobre isso. Um publicitário pode ser demitido por ter criado uma peça através do Chat GPT? O cara que foi enganado teria algum tipo de proteção? Nossa lei diz outras coisas que podem impedir isso, como a questão de proteção à propriedade intelectual. Só que isto precisaria de jurisprudência. Tudo é muito novo ainda.

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