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Os demônios dos homens

Está em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, romance de José Saramago: “Sim, meu filho, o homem é pau para toda a colher, desde que nasce até que morre está sempre disposto a obedecer, mandam-no para ali, e ele vai, dizem-lhe que pare, e ele para, ordenam-lhe que volte para trás, e ele recua, o homem, tanto na paz como na guerra, falando em termos gerais, é a melhor coisa que podia ter sucedido aos deuses”.

Como os deuses não aparecem para ninguém, mas falam sempre por intermédio de homens que se apresentam como seus mensageiros, o trecho de Saramago aponta para uma crítica veemente justamente dos homens que, falando em nome dos deuses, exploram, controlam e manipulam outros homens.

É difícil ver isso de modo mais claro naqueles que, atualmente, se utilizam da figura dos demônios para supostamente explicar algum acontecimento na vida das pessoas: fulano de tal agiu violentamente porque o diabo o incitou; a doença grave vai embora se for expulso do corpo do doente o demônio que o possui; a depressão é causada pelo diabo e, portanto, deve se levar o doente à igreja para que seja expulso o espírito que causa esse mal. Os exemplos aqui poderiam ser multiplicados e o leitor certamente poderá se lembrar de alguma situação em que algum tipo de “explicação” para algum fenômeno foi dada recorrendo-se a esse expediente, digamos, “demoníaco”. A questão é: não tem como ficar mais clara a exploração que se faz da ingenuidade e, por vezes, do desespero alheio, do que quando se invoca a figura das trevas para a explicação dos males cotidianos.

Quando vivíamos em tempos pré-científicos até fazia algum sentido acreditar em coisas do tipo. Foi a partir da ignorância que pessoas, por exemplo, sofrendo de ataque epiléptico foram tomadas como endemoniadas; foi essa mesma ignorância (nem entro aqui na questão da má-fé) que condenou todo tipo de diferença em relação a um padrão considerado “normal”: canhotos, pessoas com gagueira, albinos, homoafetivos etc., já sofreram no passado a acusação de estarem com o diabo no corpo. Hoje dispomos de explicações para todos esses fenômenos, explicações, aliás, suficientes, para deixar de tratá-los como anormalidades.

Portanto, caro leitor, cara leitora, desconfie de qualquer pessoa, seja autoridade religiosa ou não, que se aproveite das costas largas dos demônios para explicar as agruras da vida. A doença, a dívida no banco, o desemprego, as atitudes estranhas das pessoas ou acontecimentos “inexplicáveis” devem ser encaradas a partir dos recursos que conhecemos: a medicina, a psiquiatria, a economia, a sociologia etc. Continuar a falar em demônios em pleno século XXI é querer colocar uma venda nos olhos para se recusar a encarar as coisas de frente. Os sabichões sabem disso, mas não querem abrir mão de sua fonte de lucros.

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